Introdução
Nos diversos países pelo mundo afora, sem ser o nosso a exceção, a política criminal (programa do Estado para controlar a criminalidade) é motivo de preocupação, levando-nos a questionar acerca da capacidade de o Estado responder com medidas oportunas e pertinentes na solução de conflitos.
Não causa nenhuma surpresa, por ser fato notório, que o modelo tradicional de justiça penal (retributivo-punitivo) tem se mostrado um fracasso, tanto empiricamente como teoricamente, diante deste quadro, pensadores e movimentos críticos tem buscado modelos outros de reação ou resposta ao delito, entre eles, o modelo restaurativo, que representa uma virada do atual sistema penal porquanto implica num processo de diálogo participativo e ativo entre as partes envolvidas no conflito vítima, ofensor e comunidade tendente fundamentalmente a buscar soluções em conjunto para este conflito, reparando o dano (sentido lato) ocasionado pela infração e restaurando a relação entre as partes, prevenindo a sua repetição e restabelecendo a paz social.
Nesse sentido, longe de exaurir a temática, a pretensão deste artigo é apresentar e suscitar um debate acerca da Justiça Restaurativa.
Modelos de reação ao crime
Os modelos de reação ou resposta ao delito ou crime são distintos, a saber:
Modelo dissuasório ou clássico também conhecido como modelo retributivo, este modelo se centra na punição ao infrator, que deve ser intimidatória e proporcional ao dano causado. O Estado e o ofensor são os protagonistas e vítima e a comunidade restam excluídos.
Modelo ressocializador O delito é reconhecido como um evento multifatorial. Este modelo enfoca no ser humano e pondera a ressocialização do infrator a sociedade através da privação da liberdade. Apesar de atribuir à pena finalidade diversa do modelo retributivo punição e retribuição, o modelo ressocializador também é punitivista. O Estado e o ofensor são os principais atores e a vítima e a comunidade restam excluídos.
Modelo integrador advoga pela desjudicialização baseado num direito de intervenção mínima, onde o sistema carcerário está reservado para quando não há outra alternativa, a não ser a segregação. Este modelo, por sua natureza, potencializa o desenvolvimento de métodos alternativos de resolução de conflitos, de acordo com a convicção de que são as partes envolvidas no conflito as que devem se comprometer em sua solução e, é nesta visão, onde nasce a possibilidade de utilizar práticas restaurativas em casos penais.
O modelo integrador converte a vítima e a comunidade em protagonistas do drama penal, também não deixam o ofensor fora deste sistema, este modelo é a conseqüência de uma troca de paradigma de uma justiça retributiva a uma justiça restaurativa. O modelo integrador busca satisfazer verdadeiramente as expectativas sociais no caminho de pacificar as relações humanas, de tal sorte que flexibiliza práticas como a justiça restaurativa(1).
Escorço histórico
A atual descrição do modelo de Justiça Restaurativa é de recente elaboração, mas as idéias que a fundam existem desde tempos ancestrais, em povos de diversas culturas, com distintos nomes. As raízes do modelo restaurativo originam-se nas sociedades comunais em geral (pré-estatais européias e as coletividades nativas), onde os interesses coletivos superavam os interesses individuais. Nestas comunidades o crime era visto como danoso às pessoas. O suposto infrator pertencia ao clã ou era conhecido pela comunidade, excluí-lo era um prejuízo para os interesses e sobrevivência do grupo, a forma de salvar a situação era realizando rituais que incluíssem os princípios restaurativos, com encontros frente à comunidade de vítimas e agressores, suas famílias, e integrantes da comunidade e autoridades comunitárias. A transgressão de uma norma causava reações orientadas para “restaurar” o equilíbrio rompido visando a manutenção da coesão do grupo, para tanto o infrator deveria reparar o dano causado tanto a vítima como para a comunidade, reintegrando-os a comunidade, desta maneira os laços entre o agressor, a vítima e a comunidade restavam reestruturados, logrando com isso a transformação de novas gerações(2).
Com o movimento de centralização dos poderes e do nascimento das nações-estado modernas, fez se necessário a imposição de uma sistema único e unificador para a neutralização das práticas habituais, o que levou a quase extinção destas práticas(3).
No âmbito penal, este modelo, de monopólio estatal da justiça (retributivo-punitivo), mostrou se inadequado, tanto teoricamente como empiricamente. Surgiram então, desde o final da Segunda Guerra mundial, vários movimentos críticos ao sistema de justiça criminal, propondo uma mudança de orientação nas políticas penais, com um progressivo deslocamento na direção dos direitos humanos, advindos da declaração de 1948.
Podemos notar que nos anos 60s e 70s, com a crise do ideal ressocializador e da idéia de tratamento através da pena privativa de liberdade, houve duas propostas por parte da doutrina: um setor advogou por um retribucionismo renovado (desert theories), enquanto outro propôs uma mudança de orientação no Direito Penal, enfocada no desenvolvimento de idéias de restituição penal e reconciliação entre as partes que, talvez, possam ser considerados como embriões da justiça restaurativa(4).
Podemos estabelecer, além de vários outros fatores, quatro importantes movimentos que levaram ao ressurgimento do modelo restaurativa contemporâneo: a) o abolicionismo; b) a vitimologia; c) a contestação das instituições segregadoras (cárcere e manicômios judiciários) e d) a exaltação da comunidade. Estes movimentos buscavam um modelo de controle social diferente, mais humano, justo e não punitivo.
A primeira experiência contemporânea com práticas restaurativas se deu em 1974, onde dois jovens de Elmira, Ontário/Canadá, acusados de vandalismo contra 22 propriedades, participaram de encontros presenciais com suas vítimas a fim de chegar a um acordo de indenização. Os dois rapazes visitaram as vítimas e foi negociado o ressarcimento e dentro de alguns meses a dívida tinha sido paga. Assim nasceu o movimento de reconciliação entre vítimas e ofensores do Canadá(5).
O País pioneiro a introduzir o modelo restaurativo na legislação foi à Nova Zelândia, em 1989, onde aprovou o Estatuto das Crianças, Jovens e suas Famílias – Children, Young Persons and Their Faimlies Act. A responsabilidade primária pelas decisões sobre o que seria feito foi estendida às famílias. O processo essencial para tomada de decisões deveria ser a reunião de grupo familiar (family group conferences), que visava incluir todos os envolvidos e os representantes dos órgãos estatais responsáveis na busca da solução do conflito(6).
A partir daí a Justiça Restaurativa tornou-se “o” movimento social emergente para as reformas da justiça criminal, concebida como uma tentativa de olhar o crime e a justiça através de novas lentes (ZEHR), lentes que tentavam desenvolver (e nisto oferece) uma série de novas abordagens e intervenções(7).
Em decorrência destas experiências e de tantas outras pelo mundo o Conselho da Europa aprovou em 1999 a Recomendação n.º R (99) 19 sobre mediação penal. Seguiu-se, em 2001, e por iniciativa da União Européia, a decisão quadro do Conselho, de 15 de março de 2001, relativa ao estatuto da vítima em processo penal, na qual a mediação penal é, igualmente, incluída. Do mesmo modo, ao nível das Nações Unidades, os desenvolvimentos nesta matéria seguem o rumo internacional e, em 2002, o Conselho Econômico e Social aprova os Princípios Básicos no Uso de Programas de Justiça Restaurativa em Matéria Penal.
Em 2005, com a Declaração de Bangkok, reiterou-se a importância de seguir elaborando políticas, procedimentos e programas em matéria de justiça restaurativa, promovendo a incorporação de enfoques restaurativos nas práticas de justiça penal.
Atualmente, temos várias experiências, modelos e marcos jurídicos de Justiça Restaurativa e práticas similares na África do Sul, Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Escócia, Estados Unidos, Finlândia, França, Noruega, Nova Zelândia.
No Brasil temos um projeto de lei, atualmente tramitando na Câmara dos Deputados, PL 7006/2006, propondo alterações no Código Penal, no Código de Processo Penal e na Lei dos Juizados Especiais Criminais visando regular o uso facultativo e complementar de procedimentos de justiça restaurativa no sistema de justiça criminal, em casos de crimes e contravenções penais. Há outros três documentos importantes sobre Justiça Restaurativa no Brasil e América Latina: Carta de Araçatuba (abril 2005); Declaração da Costa Rica sobre a Justiça Restaurativa na América Latina (setembro 2005) e Carta de Recife (abril 2006). Há também vários projetos pilotos em andamento, entre eles podemos citar: Belo Horizonte/MG, Brasília/DF, Porto Alegre/RS, Joinville/SC, Recife/PE (suspenso), Guarulhos/SP, Heliópolis/SP, Caetano do Sul/SP, Campinas/SP, Gama/DF, Curitiba/PR, Santana/SP.
No dia 17 de agosto de 2007, em São Paulo, no Auditório da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, foi fundado o Instituto Brasileiro de Justiça Restaurativa (IBJR), uma organização não governamental, que congrega professores, pesquisadores, psicólogos, advogados, publicitários, jornalistas, pedagogos, defensores públicos, sociólogos, membros do ministério público e da magistratura, médicos, estudantes, entre outros, visando difundir e dar suporte as práticas restaurativas(8). (Continua)
Em busca de uma definição
O psicólogo americano Albert Eglash é apontado como o primeiro a ter empregado a expressão “restorative justice”(9).
Outros termos são utilizados, entre outros, Justiça Transformadora ou Transformativa, Justiça Relacional, Justiça Restaurativa Comunal, Justiça Restauradora, Justiça Recuperativa, Justiça Participativa, Justiça Recreativa, Justiça Reparadora, Justiça Reparativa.
Exame sobre a literatura referente ao tema demonstra que, por ser a justiça restaurativa um modelo recente e em construção, não surgiu nenhuma definição única, consensual, de justiça restaurativa.
Podemos dizer que a justiça restaurativa parte de três posturas básicas: 1) O crime causa danos a pessoas e a comunidade; 2) Causar danos leva a obrigação; e 3) A obrigação principal é reparar os danos(10).
A Resolução 2002/12 da Organização das Nações Unidades define a justiça restaurativa como qualquer programa que use processos restaurativos e objetive atingir resultados restaurativos. Processo restaurativo significa qualquer processo no qual vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) ou círculos decisórios (sentencing circles). Resultado restaurativo significa um acordo construído no processo restaurativo, que incluem respostas e programas tais como reparação, restituição e serviço comunitário, objetivando atender as necessidades individuais e coletivas e responsabilidades das partes, bem como assim promover a integração da vítima e do ofensor.
Segundo Zehr, para compreender a justiça restaurativa é preciso “trocar as lentes” aliás, denomina-se Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça a obra de Howard Zehr (2008), uma das mais importantes e pioneiras obras sobre a Justiça Restaurativa. Para esse autor (pp. 170-171) “O crime é uma violação de pessoas e relacionamentos. Ele cria a obrigação de corrigir os erros. A justiça envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de soluções que promovem reparação, reconciliação e segurança.”
Diversos autores acolhem a definição oferecida por Tony Marshall(11) para quem “a justiça restaurativa é um processo de diálogo, onde as pessoas afetadas em decorrência de determinado crime se reúnem visando solucionar, conjuntamente, qual a melhor forma de resolver o problema e lidar com suas implicações futuras, em regra, com a ajuda de um facilitador”.
Assim, Justiça restaurativa é um novo conceito de solução de conflitos, constituindo um novo paradigma, que reformula o modo convencional de definir crime e justiça, com grande potencial transformador do conflito na medida em que intervém de modo mais efetivo na pacificação das relações sociais(12). (Continua)
Notas:
Adaptação, com algumas alterações, de palestra proferida no Curso de Formação dos Defensores Públicos da União, realizada no dia 20 de agosto de 2008, em Brasília/DF. Quero manifestar meus sinceros agradeçimentos aos nobres Defensores Públicos da União: Dr. Esdras dos Santos Carvalho, Dr. Felipe Caldas Menezes, Dr. Haman Tabosa de Moraes e Córdova e Dr. Eduardo Flores Vieira.
(1) TELLO, 2007; VITTO, 2005, pp. 42-44.
(2) JACCOUD, 2005, p. 163; TELLO, 2007.
(3) DUPONT-BOUCHÂT apud JACCOUD, 2005, p. 164.
(4) CARRASCO ADRIANO apud PALLAMOLLA, 2006, p. 192.
(5) ZEHR, 2008, p. 150.
(6) HASSALL apud MAXWELL, 2005, p. 280.
(7) FROESTAD e SHEARING, 2005, p. 79.
(8) Para saber mais acesse: http://www.ibjr.justicarestaurativa.nom.br
(9) JACCOUD, 2005, p. 165.
(10) TELLO, 2007.
(11) Apud LARRAURI, 2004, p. 73.
(12) NUNES, 2005, p. 73.
Neemias Moretti Prudente é bacharel em Direito, especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal e Universidade Federal do Paraná (ICPC/UFPR), mestrando em Direito Penal pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep/SP). Pesquisador integrante do (Unimep/SP). Membro fundador e conselheiro do Instituto Brasileiro de Justiça Restaurativa -IBJR. Membro da Sociedade Brasileira de Vitimologia – SBV, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM. Membro do Conselho Editorial da Revista Sociologia Jurídica e da Revista Âmbito Jurídico. Embaixador de Cristo.Email: neemias.criminal@gmail.com.