Transcorridos praticamente seis anos de vigência da Lei 11.101/05 – que trata da recuperação e da falência do empresário individual e da sociedade empresária -, nota-se que vários dispositivos estão em total desconformidade com o propósito do texto legal, que é justamente a tentativa de superação da crise econômico-financeira momentânea e conseqüente preservação da atividade econômica organizada. A pedra de toque do texto de lei é justamente o contido no art. 47, sendo que, como se sabe, o processo de falência está em segundo plano. Com efeito, são inúmeras as incongruências da lei [que, com os respeitos devidos aos que pensam de forma diferente, ainda não disse a que veio], mas este texto restringir-se-á ao exame de apenas e tão-somente algumas questões relativas aos prazos legais, especialmente direcionados ao devedor em crise e aos seus credores. Demonstrar-se-á, ao final, que a [incoesa] estrutura da lei não guarda qualquer coerência lógica, sendo que tal aspecto coloca em risco o sucesso da reorganização judicial.
A decisão que determina o processamento da recuperação judicial [art. 52][1] é uma das mais importantes proferida no bojo dos autos do processo, abrindo-se ao devedor, quando de sua intimação, o prazo “improrrogável”[2][3] de 60 [sessenta] dias, segundo a lei, para apresentar o plano de reorganização. Tal documento se reveste da maior importância ao processo e que carimba a sorte do empresário. O mesmo despacho abre um horizonte aos credores: poderão pedir que o juiz convoque assembléia geral [art. 52, §2º], que deverá[4] ocorrer, por força do art. 56, §1º, em até 150 [cento e cinqüenta] dias, contados do deferimento do processamento da recuperação [e note-se que aqui a lei não fala em publicação do despacho]. Cabe ainda aos credores descontentes com os termos do plano apresentar, em até 30 [trinta] dias, a assim denominada “objeção“, prazo que se inicia após a publicação do edital referido no art. 53, parágrafo único. Além disso, algumas medidas judiciais ajuizadas em face do empresário recuperando necessariamente serão suspensas por 180 [cento e oitenta] dias[5], por força do que dispõe o art. 6º, §4º, podendo os credores, após o decurso de tal prazo, a elas dar regular prosseguimento[6] [7]. Outras demandas terão curso normal, mesmo durante o prazo de suspensão, o que se torna de todo incongruente com o espírito da lei. O restabelecimento do direito [concedido ao credor] de iniciar ou mesmo de dar regular continuidade as demandas, após o decurso do prazo legal, sem dúvida, causa ainda maiores transtornos ao devedor em crise e pode até mesmo desestabilizar o processo reorganizacional. O prazo de suspensão [180 dias] de algumas demandas não contribui para a tentativa de estancar a crise. Dificilmente o recuperando, durante tal prazo, obterá êxito na negociação com os credores, objetivando aprovação de seu plano [tácita ou via assembléia geral]. Com efeito, além da obrigação de propor e discutir seu plano com credores o recuperando terá ainda a árdua tarefa de tentar suspender as demandas não adstritas à recuperação judicial [ver art. 49, e seus parágrafos, v.g.], sendo não menos certo que a doutrina e a jurisprudência já começam a falar em juízo universal da recuperação [8], o que se mostra salutar, se se quer pensar, realmente, em tentativa de soerguimento do devedor mergulhado em crise. Ora, se a idéia é que o espírito interpretativo esteja carregado com a indispensável hermenêutica jurídica, então é possível falar em juízo universal da reorganização. Traduzindo em miúdos: o tempo [processual] não para. Corre [e muito rápido] contra o devedor mergulhado em crise e que busca a tutela estatal para fins de se compor com o universo de credores [assinando um “contrato” com estes, e que se chama “plano de recuperação judicial”]. Além de se ver diante de ações com regular curso, ainda precisará de várias habilidades para negociar seu plano de recuperação, tarefa efetivamente espinhosa, hercúlea, delicada e que nem sempre resulta positivamente ao recuperando em crise. Ingressando na verdadeira arena judicial assim denominada de recuperação judicial [e nesta terá indiscutível poder de barganha perante seus credores], o devedor tem [ou deveria ter] a firme convicção de que dela poderá sair vitorioso [o que se espera], com a aprovação [pelos credores] e conseqüente homologação judicial de seu plano; estará [apenas em tese] recuperado [a efetiva recuperação somente poderá vir com o passar do tempo e, não raro, após o decurso do prazo de 2 anos previsto no art. 61 da lei em comento. Dir-se-ia, nessa esteira, que o devedor continuará com a tarja de recuperando, mesmo após cumprir seu plano reorganizacional], retornando ao mercado competitivo. Mas o futuro do recuperando é uma verdadeira incógnita; a reorganização judicial se traduz em um verdadeiro salto no escuro. Não se descuide, pois, de que o devedor poderá sofrer um sério e talvez irremediável aborrecimento: a decretação de sua falência[9], caso nesse sentido venha a ser deliberado em assembléia de credores [art. 73]. Em tal hipótese – formulação de pedido de falência, pelos credores reunidos em assembléia[10] – o juiz pouco ou quase nada poderá fazer para que o devedor seja, a contragosto dos credores, mantido no mercado [cram down, art. 58, §1º da lei de regência][11] e o tema será esmiuçado noutro lugar. O provável caminho, quando da não aceitação do plano, será [realmente] a decretação da falência do recuperando. Como dito, intimado da decisão proferida no art. 52, o recuperando terá “até” 60 dias de prazo para apresentar em juízo seu plano de reestruturação, cabendo agilidade e poder de convencimento para vê-lo aprovado em assembléia, ou mesmo acolhido tacitamente pelos credores [e nesta hipótese inexiste formal objeção ao plano]. Em caso de êxito da empresa – concordância dos credores – a entidade recuperanda obterá a segunda decisão importante proferida no curso do processo, ou seja, a concessão da recuperação judicial [art. 58]. Tal decisão cria a ele, empresário recuperando, um certo alívio [imediato, apenas]. Entrementes, passados os 180 dias de suspensão das demandas os credores poderão dar prosseguimento regular às ações ou mesmo ajuizar outras tantas, tal como consta da lei[12]. Esse é o fantasma que, a partir do momento em que se opta por requerer a recuperação judicial, assombra diuturnamente o empresário em crise. Dependerá da análise do caso concreto, e não raro na esfera recursal [agravo de instrumento] determinar a suspensão das demandas mesmo após transcorrido o referido prazo legal. Com efeito, não há qualquer certeza de aceitação do plano reorganizacional ou mesmo de aprovação sem modificações por parte dos credores [e com a anuência do devedor]. Existe, entretanto, o risco de convolação da recuperação judicial em falência[13], sendo que tal possibilidade decorre da própria lei de regência. Nessa linha, quem de fato determina o futuro do empresário em crise, em última análise, é o mercado, considerando o sistema capitalista de produção [economia de mercado[14]. Em tempos globalizantes pós-modernos, esta é a realidade inafastável e que pode ser simplesmente deletéria aos interesses do devedor mergulhado em crise e, em última análise, pode prejudicar até mesmo a própria sociedade como um todo, sociedade essa que tem interesse no sentido de que o empresário em crise retorne o quanto antes ao mercado competitivo. Caso os credores não expressem [formal ou informal] anuência ao plano, discordando pois da permanência do devedor no mercado, deverá ele ser afastado compulsoriamente, por mais que o juiz verifique no caso concreto uma [discutível, doutrinariamente] função social da empresa.
No que diz especificamente com os prazos aos quais estará adstrito o devedor, bem esclarece Eduardo Secchi Munhoz que se a assembléia geral não se realizar em 180 dias do deferimento do processamento da recuperação judicial, ainda que a falência não possa ser decretada (o plano não foi ‘rejeitado’), o devedor perderá uma das principais proteções que lhe são oferecidas pelo processo de recuperação judicial, qual seja, a suspensão das ações e execuções dos credores[15]. Diante de tais considerações e não olvidando dos demais prazos aqui especificados, nota-se claramente que o devedor em crise precisará contar com muita habilitante para lograr êxito na aprovação do plano reorganizacional em tão exíguo prazo de 180 dias. Considerando a morosidade do andamento processual é quase certo que o recuperando não terá condições de ver aprovado seu plano nos precisos prazos estabelecidos por lei, sendo que o único caminho no horizonte é o próprio Judiciário, e pela via recursall buscando, por esta senda, uma tentativa de equiparação à lei estadunidense.
- [1] E quando da análise da petição inicial o juiz não poderá [não deve] decretar a falência do devedor, por força do art. 73, que estabelece as hipóteses específicas para a retirada do devedor do mercado. Entrementes, cabe ao juiz analisar se estão presentes no caso concreto: [i] os pressupostos processuais e as condições da ação e [ii] se a inicial cumpriu o art. 51 da lei de regência. O TJSP por sua Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais estabeleceu, via Súmula 56, que “na recuperação judicial, ao determinar a complementação da inicial, o juiz deve individualizar os elementos faltantes”. Contra a decisão que manda processar a recuperação judicial poderá o credor prejudicado ingressar com agravo de instrumento, estando afastada a Súmula 264 do STJ. Inexiste qualquer utilidade na interposição de agravo retido.
- [2] Nada impede que no caso concreto possa ocorrer concessão de prazo razoável à juntada de tal documento, sem que se possa em falência, se se considerar que a lei tenta, quanto possível, evitar que o devedor seja retirado do mercado.
- [3] E a sanção para a não juntada do plano reorganizatório é justamente a decretação da falência [art. 73, II].
- [4] E, nesse passo, note-se que a lei não impõe qualquer sanção caso a assembléia deixe de ser realizada em tal prazo.
- [5] Nesse passo, não se observou, por mera opção [e equivocada] política legislativa, o assim denominado automatic stay norte-americano, o que se lastima. O único prejudicado pela não adoção de tal instituto na Lei 11.101/05 é o devedor em crise. Mas, esse prejuízo pode até mesmo ser estendido à própria sociedade como um todo. Para os credores, a não suspensão das demandas é medida que melhor se coaduna com seus particulares interesses. Portanto, a “pseudoproteção” concedida por lei ao devedor – suspensão de algumas demandas por 180 dias – não colabora para a resolução da crise. Ora, se a lei norte-americana estende o automatic stay até o final do processo de reorganização, sendo que o devedor tem o prazo de 120 dias para juntar o plano [bem maior do que o da lei nacional], nada mais correto que a Lei 11.101/05 também suspenda o curso de todas as demandas em que o recuperando seja acionado. Nos Estados Unidos admite-se, por outro lado, que o juiz, visando a proteção exclusiva dos interesses de determinados credores, afaste tal suspensão em determinado momento processual.
- [6] E o TJSP vem assentando entendimento no sentido de que, decorrido o prazo de suspensão estabelecido na Lei 11.101/05, as execuções em face do devedor recuperando poderão prosseguir normalmente. A propósito: AgInst. 7.244.575-1, 14ª Câmara de Direito Privado, julg. 13/08/2008, rel. Des. Mário de Oliveira; AgInst. 7.277.463-7, 18ª Câmara de Direito Privado, julg. 13/10/2008, rel. Des. Roque Mesquita. Ainda, TJPR: AGInst. n. 500.721-4, rel. Juiz Substituto de 2º Grau Luis Espíndola.
- [7] Sem sombra de dúvida que o prosseguimento de tais execuções em face do recuperando poderá desestabilizar o próprio processo de reorganização judicial [e o tema será objeto de outros escritos]. É importante, por outro lado analisar a decisão proferida pelo STF no RE 583.955-9- Rio de Janeiro, com voto condutor do Min. Ricardo Lewandowski.
- [8] Ver, dentre outros: STJ, Conflito de Competência n. 79.170-SP, rel. Min. Castro Meira; Conflito de Competência n. 88.661-SP, rel. Min. Fernando Gonçalves; Conflito de Competência n. 68173-SP, rel. Min. Luis F. Salomão. TJPR, Ap. Cív. n. 0560896-4, 15ª Câm. Cív., rel. Des. Jucimar Novochadlo; AgInst. n. 580.646-0, rel. Juiz Fabian Schweitzer.
- [9] Prevalecendo, nesta hipótese, a preservação do mercado, afastando-se os particulares interesses do recuperando.
- [10] Que não possui poder decisório, mas apenas deliberativo, tal como bem esclarece Luiz Inácio Vigil Neto na obra Teoria Falimentar e Regimes Recuperatórios: estudos sobre a Lei n. 11.101/05. Porto Alegre:Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 12.
- [11] Aprovar o plano de reorganização, mesmo que rejeitado em assembléia de credores.
- [12] Não cabe aqui o exame das decisões dos tribunais a respeito da competência para a execução de julgados tendo como devedora a entidade recuperanda.
- [13] Também não se descuide de que credores não sujeitos à recuperação judicial [art. 73, p. único da lei de regência] poderão requerer a falência do devedor, perante o mesmo juízo da reorganização [art. 6º, §8º].
- [14] E note-se que a Lei 11.101/05 foi editada para fins de proteção do interesse de certos credores, não voltada ao interesse social [como lhe competia]; à preservação da atividade econômica organizada, de modo que o conteúdo principiológico constante de alguns dispositivos (47 e 54, por exemplo) não passa de mera retórica, peça decorativa. Para comprovar tais assertos, basta ler com atenção o conteúdo dos artigos 49 e 199, apenas como mero exemplos. Após a leitura, certamente que a conclusão do exegeta será esta: a lei visa proteger os interesses do mercado, em última palavra. Ora, alguns dos importantes papéis do Estado moderno são justamente [i] funcionar como garantidor do funcionamento do mercado [estabilidade da moeda nacional, livre concorrência, conforme art. 173, §4º da Constituição Federal; [ii] garantir o direito de propriedade e [iii] velar pelo cumprimento dos contratos juridicamente perfeitos, deixando que a economia flua, regulando as atividades econômicas que reputar relevantes [arts. 170 e 174 da Carta Política]. Entrementes, cabe a este mesmo Estado: [a] buscar a redução das desigualdades sociais [e se tais desigualdades são um dos grandes problemas que decorrem de tal economia de mercado, caberá ao Estado reduzi-las, dentro do possível]; [b] fornecer a infraestrutura básica, bem como, também dentro do possível, [c] amenizar os efeitos deletérios advindos dos momentos de crise econômica. Desde logo, um parêntesis: Sabe-se que a obrigação do Estado de fornecer a infraestrutura se traduz em um direito básico e legítimo de qualquer cidadão em países democráticos. Por outro lado, também se sabe que no promissor Brasil – nação ainda embrionária – o hodierno ideário é pensar em grandes, em faraônicas obras pré-copa do mundo, enquanto que significativa parte da população nacional nem sequer conta com uma regular refeição ao dia. Inexiste, pois, a tão almejada [e teórica] igualdade social. Fechado o parêntesis, nota-se claramente que, no caso da lei em comento, a balança entre os interesses do mercado ([neo]liberalismo econômico) e os da sociedade não visivelmente está equilibrada, sendo que vários e importantes princípios de envergadura constitucional foram olvidados por completos quando da edição da Lei 11.101/05. Talvez aquele que está em degrau bem superior – o da dignidade da pessoa humana – passe ao largo da referida lei de reorganização, bastando citar que o conteúdo do art. 54 nem sempre é devidamente aplicado [observado] na prática processual. Conquanto o modelo legal reorganizatório brasileiro se tenha inspirado no estadunidense, deixou-se de observar as vicissitudes, as peculiaridades próprias do empresário brasileiro, de modo que a não suspensão de todas as demandas nas quais esse mesmo empresário figure como réu é um indisfarçável equívoco, sendo não menos certo que alguns dispositivos da lei nacional carecem de imediata alteração. Um parêntesis final: o consumo no Brasil, considerando a então política governamental de incentivo à aquisição de bens, levou a um aspecto no mínimo preocupante. Com efeito, mais de 60% da população nacional se encontra endividada [<http://www.exame.abril.com.br>. Acesso: 10/06/2011]. Por outro lado, nota-se que o IOF para compras realizadas no exterior subiu de 2,38% para 6,38%, [Decreto n. 7.454, de 25/03/2011] e o propósito governamental é justamente frear [agora, e depois do incentivo ao consumo] o gasto do brasileiro, via cartão de crédito, em outros países.
- [15] SOUZA JUNIOR, Francisco S. de; PITOMBO, Antônio S. A. de M. [coord.]. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Lei 11.101/05 – Artigo por artigo. 2ª edição. São Paulo:Editora Revista dos Tribunais, 2007,p. 273. Grifo constante do original.
Carlos Roberto Claro é Advogado em Curitiba. Especialista em Direito Empresarial; Mestre em Direito pelo Unicuritiba, professor de Direito Empresarial na Universidade Positivo.