Algumas considerações sobre o Projeto de Lei n.º 71/2003, do Senado Federal

Recentemente o Senado Federal encaminhou à Câmara dos Deputados a redação final do substitutivo ao Projeto de Lei n.º 71/2003 (n.º 4.376, na casa de origem), o qual regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária (sic). O presente texto limitar-se-á a apresentar algumas considerações gerais sobre o projeto enviado à Câmara. Inicialmente, é de conhecimento público que a grande maioria dos dispositivos apresentados no projeto original foram alterados, mantendo-se na íntegra apenas oito artigos. Também houve alteração no que diz com o aspecto estrutural e buscou-se a “coerência interna da lei”, no dizer do relator. Efetivamente, no que diz com a forma, houve aprimoramento.

Inicialmente, e em conformidade com o artigo 4.º, o Ministério Público, mediante provocação ou por iniciativa própria “poderá” (sic) intervir nos processos de recuperação judicial ou de falências, caso constate indício de crime, infração à lei ou ameaça de lesão ao interesse público. A intervenção se estende aos incidentes, tais como habilitação de crédito, pedido de restituição etc., de modo, ao contrário da regra expressa hoje, pela vetusta lei em vigor (art. 210), foi dado novo âmbito de atuação aos agentes ministeriais. Nessa linha, no tocante ao pedido de recuperação judicial, por exemplo, não há expressa previsão legal de que o agente deve ser pronunciar antes de o juiz deferir o processamento do favor legal. É o que se dessume da leitura do art. 52 do texto. Poderá, entretanto, requerer a substituição do administrador judicial ou mesmo dos membros componentes do comitê, se nomeados em desarmonia aos preceitos legais. É o que se verifica da análise do art. 30, §2.º do projeto em comento.

O artigo 50 estabelece os meios de recuperação judicial, dentre eles cumpre destacar os seguintes: cisão, incorporação, fusão ou transformação da sociedade, constituição de subsidiária integral (em consonância com o art. 251, da Lei n. 6.404/76, tendo como único acionista – unipessoalidade – sociedade brasileira); trespasse do estabelecimento, dação em pagamento, venda de bens, usufruto da empresa e administração compartilhada. Muito embora o art. 50 contemple 16 hipóteses tidas como meios de recuperação, entendemos que outros poderão existir com a substituição de garantias anteriormente ofertadas.

No tocante ao processo de falência, o art. 83 apresenta a classificação dos credores, obedecendo a preferência dos créditos trabalhistas, limitadas ao teto de 150 salários-mínimos e os decorrentes de acidente de trabalho. Em segundo lugar (!) ficam os créditos com garantia real até o limite do valor do bem gravado e em terceiro vêm os tributários, independentemente da natureza e tempo de constituição, ficando de fora as multas tributárias. Depois vêm outros credores que aqui não serão tratados. Impende destacar que houve significativa e drástica mudança em relação à hierarquia estabelecida pelo atual art. 102 do Dec.-Lei n.º 7.661. Com efeito, o legislador colocou no mesmo plano os credores trabalhistas e aqueles por acidente de trabalho, inovando, ao contrário do que dispõe o art. 102, §1.º da atual lei. Por outro lado, tem-se que, os créditos trabalhistas que ultrapassarem os 150 salários mínimos serão considerados quirografários. A razão do legislador é que a limitação se faz necessária para se “evitar abuso freqüente no processo falimentar, pelo qual os administradores das sociedades falidas, grandes responsáveis pela derrocada do empreendimento, pleiteiam – por meio de ações judiciais milionárias e muitas frívolas, em que a massa falida sucumbe em razão da falta de interesse em uma defesa eficiente – o recebimento de altos valores, com preferência sobre todos os outros credores e prejuízo aos ex-empregados que efetivamente deveriam ser protegidos, submetendo-os a rateios com ex-ocupantes de altos cargos” (parecer da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado).

Deveras, a nosso sentir, o asserto supra parte de pressuposto incorreto para se chegar a uma conclusão sem sentido, precipitada e desconexa com a realidade dos processos de falência. Nem sempre o administrador é responsável direto pelo insucesso (“failure”) da atividade e não se deve descuidar que muitas sociedades faliram considerando planos econômicos desastrosos e fatores externos (não se olvide que no ano de 2002 um dólar chegou a custar quase quatro reais. Como podem as empresas se sustentar, por exemplo, quando celebram transações internacionais?? Como poderão cumprir seus compromissos? Destarte, nem sempre a falência é causada por má administração.

Destarte, até mesmo é bastante discutível o que venha a ser “defesa eficiente” da massa falida em juízo ou mesmo se existe a possibilidade de ex-administrador ingressar com demanda trabalhista. Com o novo texto, poderá haver tratamento desigual em relação aos credores trabalhistas tidos como iguais. De outro vértice, ainda em relação ao critério de classificação, o Senado houve por bem em “passar à frente” os credores com garantias reais, situação essa não prevista no projeto da Câmara dos Deputados. Questiona-se, por que houve tal alteração?? Se a lei deve guardar harmonia com a realidade social e econômica da época em que é elaborada, não haverá uma “superprioridade” ao credor com garantia real, que passa à frente do Fisco? Aqui se não ingressará na questão dos créditos extraconcursais (art. 84) que são justamente aqueles constituídos após instaurado o processo falimentar, sendo que haverá o pagamento do crédito com precedência em relação aos contidos no art. 83, supra referido. E mais: estabelece o art. 151 que os créditos trabalhistas de natureza estritamente salarial e vencidos nos três meses anteriores à decretação da falência, até o limite de 5 salários mínimos por trabalhador, serão pagos havendo recursos em caixa.

No tocante à revocatória falimentar, houve alteração no que diz com o texto encaminhado pela Câmara Federal. Muito embora o Senado tenha dado melhor roupagem aos dispositivos, entendemos que algumas normas originárias estavam em harmonia com a realidade, e demonstravam o avanço da legislação. Agora, talvez o legislador tenha perdido a oportunidade de inovar, no tocante ao capo estritamente técnico. De início, o art. 129 do atual texto estabelece quais são os atos considerados ineficazes perante a massa falida. O prazo para propositura da ação será de 3 anos, a partir da data da falência, sendo legitimados ativos o administrador, o Ministério Público e o credor (no texto da Câmara o administrador, somente ele, tinha o prazo de 6 meses para ingressar com a demanda, e não o fazendo, a legitimidade se estenderia aos demais, dentro do prazo total de 3 anos.

O procedimento da demanda será o comum ordinário previsto no Código de Processo Civil. Não se fez diferenciação entre a ação declaratória de ineficácia relativa (art. 129) e a revocatória falimentar propriamente dita (art. 130), no tocante aos efeitos do recurso de apelação. Apenas foi dito no parágrafo único do art. 135 que “da sentença cabe apelação”. Ou seja, o legislador estabelece que o recurso, em relação a ambas as ações, será recebido no duplo efeito (regra geral do art. 520 do Código de Processo Civil). Antes, havia distinção no seguinte sentido: para os casos de ineficácia, o recurso seria recebido em seu efeito meramente devolutivo, e para as revocatórias falimentares, onde se discute fraude, prejuízo, conluio etc., haveria duplo efeito.

Mas a antecipação total ou parcial dos efeitos da tutela, que era prevista expressamente no texto da Câmara foi retirada do projeto n.º 71/2003, do Senado, mantendo-se unicamente o seqüestro de bens, na forma da legislação processual civil. Como dito, perdeu-se uma oportunidade de aperfeiçoar o texto legal. É bem de ver que na prática os juízes, sensíveis à dinâmica do Direito e em conformidade com os princípios constitucionais e processuais, têm concedido a antecipação dos efeitos da tutela, com arrimo no art. 273 do Código de Processo Civil.

O presente texto examinou apenas e tão-somente alguns dispositivos do projeto elaborado pelo Senado, mas é possível vislumbrar que há situações inovadoras e outras ficaram à margem da realidade. Em sendo assim, evidente que o retorno do projeto à casa de origem fará com que haja reflexões apuradas sobre os artigos constantes do texto.

Como dito no relatório da CAE, a missão “é dar conteúdo social à legislação” (sic), de modo que o debate para aprimoramento do texto legal é medida salutar, necessária e que se impõe.

Carlos Roberto Claro

é especialista em Direito Empresarial; professor assistente de Direito Comercial das Faculdades Integradas Curitiba; autor do livro “Revocatória Falimentar”, pela Juruá Editora, advogado. (
carlos@calixtoclaro.com.br)

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