“Há um ano, o funcionário público aposentado Antônio, de 62 anos, planejou com regularidade matemática a própria morte. Pensou em tudo. Beneficiário de uma polpuda pensão, transferiu os rendimentos de R$ 7 mil para um neto, de 4 anos. Depois, alugou um quarto de hotel no bairro da Liberdade, centro de São Paulo. Trancou-se no banheiro, cortou os pulsos e esperou. Foi salvo pela ação providencial de um camareiro. Antônio quis morrer porque devia mais de R$ 60 mil a vários credores. Eram dívidas contraídas para pagar apostas em corridas de cavalo. Todo jogador pensa no suicídio pelo menos uma vez”, relata. Para ele, morrer era como o lance de um jogo. Uma cartada para garantir a sobrevivência dos dependentes – duas filhas e um neto. A jogada gorou, mas serviu para Antônio descobrir que estava doente. Enquadrava-se no perfil desenhado pelos psiquiatras para classificar os “jogadores patológicos” ( Texto de Alberto Ramos, publicado na revista Época, extraído do site http://epoca.globo.com/)

O fato real acima descrito não pode ser considerado uma exceção. A tentativa de suicídio é comum entre os jogadores compulsivos, sendo apenas um dos efeitos na vida pessoal daqueles que foram tragados por esse vício.

Tal assertiva pode ser facilmente comprovada, através da análise de estudos feitos pela Universidade Federal de São Paulo, através da equipe do Ambulatório de Jogo do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), composta por Maria Paula Magalhães Tavares de Oliveira, Antônio Carlos Pacheco e Silva Neto e Dartiu Xavier da Silveira.(1)

Referidos estudos levaram em consideração o comportamento de 72 pacientes que procuraram ajuda no ambulatório, no período de cinco anos. Desses jogadores, apenas 42 permaneceram sob acompanhamento, dos quais 4 tentaram suicídio.

Segundo essa pesquisa, o jogador-padrão é homem, casado, tem em média 40 anos e experimenta vários tipos de jogos. No universo do levantamento, todos jogavam bingo; loteria, videopôquer e carteado vinham em seguida. Apostas em cavalos, que já consumiram fortunas no passado, estão hoje em sexto lugar entre os jogos mais difundidos.

O estudo também extrai conclusões financeiras relevantes. Entre os pesquisados, 76% completaram cursos universitários e possuem renda familiar acima de R$ 3 mil. Perderam, em média, US$ 84 mil ao longo da vida. Ganharam cerca de US$ 8 mil. É grande a incidência de representantes das classes média e alta.

Outra pesquisa, realizada pela Universidade de São Paulo (USP), feita com jogadores que recorreram ao AMJO entre abril de 1998 e janeiro de 1999, que analisava, entre outros aspectos, as diferenças e semelhanças entre o comportamento de homens e mulheres diante da patologia, detectou que o índice de tentativa de suicídios foi maior entre o grupo feminino: das entrevistadas, 35% já haviam tentado cometer suicídio. Entre os homens, a porcentagem foi menor: 7%. (dados extraídos do site: http://www.estado.com.br/edicao/pano/99/08/12/ger600.html)

Frente à sua crescente legalização, o jogo patológico, que até o século XX era considerado um problema de fracasso individual, passou a ser considerado uma questão de Saúde Pública, sendo incluído, em 1980, como categoria de distúrbio impulsivo pelos Critérios Diagnósticos do DSM-III.

Estudos científicos demonstram que o jogo patológico pode ser considerado um vício tão agressivo e perturbador quanto o vício pelo álcool ou por outras drogas, diferenciando-se pela existência de uma agravante: a dificuldade do seu tratamento.

Eis alguns índices oficiais sobre o crescimento desse vício entre os jovens e população em geral:

“Nos EUA acredita-se que de 1,4% a 3% da população seja de jogadores patológicos. Volberg e Steadman (1989), pesquisando três Estados norte americanos, relatam que a prevalência de jogo patológico varia de 1,4% a 1,5%. No Texas, pesquisas apontam 1,3% de jogadores patológicos e 3,5% de jogadores problema no conjunto da população adulta (Wallish, 1993). Em Quebec, Canadá, uma pesquisa telefônica apurou que 1,2% da população é formada por jogadores patológicos e 2,6% por jogadores-problema (Ladouceur, 1991). Em estudo realizado em Sevilha, Espanha, 1,7% da população foi classificada como jogadores patológicos e 5,2% como jogadores-problema (Legarda e cols., 1992). Bland e cols. (1993), utilizando a Diagnostic Interview Schedule, encontraram um índice de 0,42 % de jogadores patológicos em Edmonton(…).”(2)

No Brasil, a questão apresenta uma agravante, pois, além dos jogos regulamentados pelo governo, proliferam os bingos e jogos eletrônicos por todo o território, sendo oportuno lembrar o caso das combatidas máquinas caça-níqueis, as quais são de fácil acesso à população em geral, inexistindo qualquer diferenciação com relação à situação financeira e à idade, sendo vastamente divulgados na imprensa os casos de crianças que utilizam referidas máquinas como lazer.

Não obstante os esforços empreendidos pelos Ministérios Públicos estaduais e, mais recentemente, pelo governo federal, avulta a dificuldade no combate ao jogo, sendo evidente que tal atividade, extraordinariamente lucrativa, não deve ser sancionada como mera contravenção, por ser esta penalização insuficiente para dissuadir os grupos econômicos que a exploram.

É oportuna, portanto, uma reflexão mais séria sobre a conveniência de tratar com maior rigor a exploração dos jogos de azar, criminalizando tal conduta e cominando penas apropriadas, como forma de externar a sua reprovabilidade em função dos graves males que causa à sociedade.

Notas

(1) OLIVEIRA, M.P.M.T., PACHECO E SILVA, A.C. e SILVEIRA, D.X. Um programa Assistencial para o transtorno de jogo patológico Boletim de psiquiatria 32(1):20-25, 1999.

(2) idem

Maria Luiza Foz Mendonça é advogada, assessora do Ministério Público do Estado de Sergipe e especialista em Direito Penal e Processual Penal.

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