O uso de algemas no nosso país, para muitos, ainda seria um assunto tormentoso por falta de disciplina jurídica específica sobre o assunto. O art. 199 da Lei de Execução Penal sinalizou com seu regramento (art. 199: “O emprego de algemas será disciplinado por decreto federal”). Mas até hoje não temos esse decreto federal que cuide da matéria.
No Estado de São Paulo a situação é diferente porque já contamos com normas expressas segundo Carlos Alberto Marqui de Queiroz, site ibccrim.com.br, 27.02.02, que afirma: “…o uso de algemas vem sendo normatizado, há muito tempo, com excelentes resultados práticos, desde a edição do Decreto Estadual n.º 19.903, de 30 de outubro de 1950, bem como através dos mandamentos contidos na Resolução do então secretário de Segurança Pública, Res. SSP-41, publicada no Diário Oficial do Estado de 2 de maio de 1983.” Num país que tem como tradição o sistema da civil law (todo Direito é exteriorizado na forma escrita) não há dúvida que, em princípio, traz uma certa insegurança a falta desse decreto específico. De qualquer modo, quando examinamos (atentamente) todo o Direito vigente vemos que já contamos com um produto legislativo mais do que suficiente para se concluir que podemos fazer “bom” (e moderado) uso das algemas.
Desde logo cabe recordar que o uso de força física está excepcionalmente autorizado em alguns dispositivos legais:
(a) CPP, art. 284 (“Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”);
(b) CPP, art. 292: (“Se houver…resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência…”).
Já pelo que se depreende do texto vigente do CPP nota-se que a força é possível:
(a) quando indispensável no caso de resistência ou tentativa de fuga;
(b) quando os meios devem ser os necessários para a defesa ou para vencer a resistência.
Indispensabilidade da medida, necessidade do meio e justificação teleológica (“para” a defesa, “para” vencer a resistência) são os três requisitos essenciais que devem estar presentes concomitantemente para justificar o uso da força física e também, quando o caso (e com muito mais razão), de algemas.
Tudo se resume, conseqüentemente, no princípio da proporcionalidade, que exige adequação, necessidade e ponderação na medida e vale no Direito processual penal por força do art. 3.º do CPP (cuidei do princípio da proporcionalidade no artigo sobre a inviolabilidade do vereador; cf. no site www.iusnet.com.br assim como no livro Juizados criminais federais, São Paulo: RT, 2002).
Todas as vezes que o uso de algemas exorbitar desse limite constitui abuso, nos termos dos arts. 3.º, “i” (atentado contra a incolumidade do indivíduo) e 4.º, “b” (submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei) da Lei 4.898/65 (lei de abuso de autoridade).
Também por meio da analogia pode-se inferir o correto regramento do uso de algemas no nosso país.
A Lei 9.537/97, que cuida da segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional, dispõe em seu art. 10 o seguinte: “O Comandante, no exercício de suas funções e para garantia da segurança das pessoas, da embarcação e da carga transportada, pode: I – impor sanções disciplinares previstas na legislação pertinente; II – ordenar o desembarque de qualquer pessoa; III – ordenar a detenção de pessoa em camarote ou alojamento, se necessário com algemas, quando imprescindível para a manutenção da integridade física de terceiros, da embarcação ou da carga”.
Necessidade, imprescindibilidade e justificação teleológica: outra vez os três requisitos estão presentes.
Sobre a disciplina do uso de algemas no âmbito do Código de Processo Penal Militar, o advogado Rafael Leite Guimarães muito oportuna e adequadamente nos informou e ponderou o seguinte:
“Em seu art. 234, o CPPM também regulamenta o uso da força, deixando patente que só pode ser empregada em casos extremos, in verbis:
Art. 234. O emprego da força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga… (omissis).
Quanto ao emprego específico das algemas, o § 1.º do mesmo artigo é categórico:
§ 1.º O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o art. 242.
O art. 242, por sua vez, refere-se às seguintes pessoas: ministros de estado, governantes ou interventores, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários e chefes de polícia, membros do Congresso Nacional, dos Conselhos da União e das Assembléias Legislativas dos Estados, os cidadãos inscritos no Livro de Mérito das ordens militares ou civis reconhecidas em lei, os magistrados, os oficiais das Forças Armadas, das Polícias e do Corpo de Bombeiros, Militares, inclusive da reserva, remunerada ou não, e os reformados, os oficiais da Marinha Mercante Nacional, os diplomados por faculdade ou instituto de ensino nacional, os ministros do Tribunal de Contas, os ministros de confissão religiosa.
Observa-se que o dispositivo do Código de Processo Penal Militar abrange civis. E fica absolutamente cristalino que o emprego das algemas é medida profundamente vexatória, tanto que a lei restringe ao máximo o seu emprego. Algemar por algemar é medida odiosa, pura demonstração de arrogância ou exibicionismo de alguns policiais, que, como bem patenteado em seu excelente artigo, devem responder pelo crime de abuso de autoridade.
Se um cidadão tiver que ser conduzido a uma delegacia de polícia, que o seja sem atingir-lhe inutilmente o decoro, evitando-se a todo custo aumentar ainda mais a sua aflição. O uso de algemas, em conclusão, e por expressa determinação legal, deve ficar restrito aos casos extremos de resistência e oferecimento de real perigo por parte do preso”.
Inclusive o Direito vindouro serve de auxílio. Nosso projeto de Reforma do CPP (que está na Câmara dos Deputados) em seu art. 474 diz: “Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes.”
E por que toda essa preocupação em não haver abuso no uso de algemas:
(a) em primeiro lugar porque esse abuso constitui crime, como vimos;
(b) em segundo lugar porque tudo isso decorre de uma das regras do princípio constitucional da presunção de inocência (regra de tratamento), contemplada no art. 5.º, inc. LVII, da CF (ninguém pode ser tratado como culpado, senão depois do trânsito em julgado da sentença condenatória);
(c) em terceiro lugar porque a dignidade humana é princípio cardeal do nosso Estado Constitucional e Democrático de Direito.
No caso concreto do ex-senador Jader Barbalho salientou-se (para justificar o que o Presidente do STF chamou de “presepada”) que os policiais federais estariam obedecendo a normas internacionais da ICAO-OACI – Organização de Aviação Civil Internacional, no tocante a transporte de presos em aeronaves. Mas todas as regras do ordenamento jurídico interno ou internacional só possuem validade na medida em que se compatibilizam com a Constituição Federal.
Conclusão: em todos os momentos em que (a) não patenteada a imprescindibilidade da medida coercitiva ou (b) a necessidade do uso de algemas ou ainda (c) quando evidente for seu uso imoderado há flagrante violação ao princípio da proporcionalidade, caracterizando-se crime de abuso de autoridade. Cada caso concreto revelará o uso correto ou o abuso. Lógico que muitas vezes não é fácil distinguir o uso lícito do uso ilícito. E na dúvida, todos sabemos, não há que se falar em crime. De qualquer modo, o fundamental de tudo quanto foi exposto, é atentar para a busca do equilíbrio, da proporção e da razoabilidade.
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-Geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista e diretor-presidente da TV Educativa IELF (1.ª Rede de Ensino Jurídico Telepresencial da América Latina com cursos ao vivo em SP e transmissão em tempo real para todo país –
www.ielf.com.br).