Os partidos precisam ter ideologias, os eleitores devem conhecê-las, nelas acreditar e exigir que as sigam. Hoje, isso é acreditar em alma do outro mundo, pois é voz corrente e verdade recorrente que a bagunça em que se transformou a organização política do Brasil matou não só as ideologias, como os simples programas partidários. E destruiu as estradas por onde deveriam trilhar os governos. Os governados passaram a acreditar mais em consertos pré-eleitorais do que em concertos com partitura e harmonia. O objetivo é eleger-se. Governar não interessa. Ouvimos de partidos e candidatos berreiros e não sinfonias; sambas de crioulo doido, batucada desritmada. E nos tangem para as urnas como gado para o matadouro.
Resultado: no governo, cada um dança de acordo com a sua própria música, fora do ritmo do povo e longe de suas verdadeiras necessidades. E lá vai um senador sanguessuga dizendo-se socialista; um deputado milionário proclamando votos de pobreza; um vereador ladrão batendo no peito e cantando lamentos, prometendo purgar pecados com benzeduras, distribuição de dentaduras e cadeiras de rodas. Tudo comprado com o nosso dinheiro.
Mas há quem esteja ressuscitando as ideologias cuja morte tanto lamentamos e os fantasmas surgem de suas covas mais assustadores que seus cadáveres. Fazem-nos crer que choramos lágrimas inúteis. Na América do Sul, por exemplo, surgem governos ditos ideologicamente de esquerda, como o do venezuelano Chávez, do cocaleiro boliviano Evo Morales, que se multiplicam para fazer medo ao governo direitista que preside os Estados Unidos.
Que bom que tal esteja acontecendo, pois ressurgem as ideologias que gostaríamos nunca tivessem morrido e se forma uma frente do bem contra o mal. Aí surge a insensatez e os paradoxos a nos mostrar as choradas ideologias mortas como uma reencarnação paradoxalmente indesejável. Veja-se a semelhança ideológica desses governos e lembremos-nos de campanhas patrióticas, nacionalistas, entusiasmantes, como aquela de ?o petróleo é nosso?, pela qual sofreram tantos brasileiros que amavam esta pátria. Para citar só um, evitando os políticos para não corrermos o risco de falar de alguém do mal, apontamos Monteiro Lobato. Era escritor e não político; fazia livros para adultos, mas foi comoventemente dedicado às crianças. Era pai da Tia Benta, da Narizinho, do Jeca Tatu e de tantas adoráveis personagens. Era do belo e do bem.
Pois seu ?o petróleo é nosso? e outras bandeiras nacionalistas impregnadas da mais pura e sadia ideologia, que defendia com sacrifícios, hoje ressurgem com homens como o cocaleiro Morales. E somos com ele solidários, para não sermos hipócritas. Defende o que defendíamos e a verdade é verdade até na boca do diabo. O petróleo que antes dizíamos era nosso, com a mesma legitimidade o gás e o petróleo são deles, bolivianos. A chorada ideologia morta ressuscita para puxar-nos os pés. E Morales manda o seu exército tomar as nossas refinarias, encarecer a energia petrolífera que nos vende ao preço do olho da cara; e, para mais da desgraça, apropria-se e manda prender ou expulsar colonos brasileiros pobres que vivem criando galinhas e plantando milho em fazendas e em pequenos sítios, do outro lado da fronteira.
É a lamentada ideologia sob cujo túmulo chorávamos, ressurgindo como aterrador fantasma. E o nosso governo, para ser coerente, silencia ou aplaude quem nos ferra com tanto fervor e tira o pão da nossa boca. Que paradoxo!
Ficamos sem saída, a menos que nos lembremos de um outro mandamento nacionalista e ideologicamente correto que um dia levantamos e podemos, agora, brandir como uma espada para defender os interesses do nosso povo contra o uso dos mesmos princípios ideológicos que um dia prometemos defender até a morte.
Inventamos que quem é dono do solo não é dono do subsolo. O petróleo que está lá no fundo do buraco não pertence ao ?terrateniente?, seja um simples sitiante ou o governo do índio Morales. Nem à Shell, à Texaco ou à ?imperialista? Petrobras. Está aí o antídoto que precisávamos. O petróleo da Bolívia não é deles. É um bem da humanidade, também é nosso, pois está no subsolo que é um bem comum. Quem é dono do solo não é dono do subsolo. Com a maior cara de pau, poderíamos usar a ideologia falecida como uma alma penada a levantar-se do túmulo para defender os interesses que um dia foram nossos, e que hoje são, com os mesmos argumentos, dos bolivianos.