É prudente a observação que volta a fazer o ministro Carlos Velloso, do Supremo Tribunal Federal, a respeito dos supersalários, que em alguns casos vão muito acima do teto de R$ 17,3 mil fixado para os ministros da casa. Situações assim existem de fato, mas há que se dar respeito a direitos que foram adquiridos através de leis. Para ele, se a suprema corte não estivesse curvada ante o respeito aos contratos, “era hora de a sociedade se preocupar”.
De fato, pacta sunt servanda, isto é, os contratos existem para serem cumpridos e, também como observa Velloso, muitos dos casos que escandalizam as pessoas (afinal, R$ 50, 40, 30 mil por mês, e menos, é um absurdo e uma afronta aos contribuintes num país de milhões de pobres) decorrem de normas estabelecidas. “Muitas vezes – observa o ministro, inocentando os portadores dos supercontracheques, entre os quais desembargadores, colegas seus de magistratura – o sujeito está tirando, ganhando um salário elevado em razão de leis.”
O ministro pede cautela aos que se dedicam à reforma do Judiciário e à reforma da Previdência, em cujo âmbito se discutem coisas relacionadas ao nível dos vencimentos, vantagens e adicionais. E se diz preocupado com a instituição – isto é, o Poder Judiciário. “À medida em que os novos juízes não terão uma aposentadoria condizente, eu não sei onde vamos recrutar bons juízes”, ponderou, pois “muitos bons talentos ingressam na magistratura e no Ministério Público pensando numa segurança para o final da vida; se não têm essa segurança, será que vão se esforçar como deviam em prol da magistratura ou será que vão procurar outros meios de fazer um pé-de-meia?”, pergunta, preocupado, o ministro, que se diz cheio de direitos adquiridos.
O sonho de qualquer cidadão é fazer esse pé-de-meia. Uns o fazem com base na lei, outros com base no trabalho. Outros, ainda, com base em recursos menos ortodoxos, ao arrepio da lei. Para a maioria, entretanto, a meia é furada ou não serve no pé. Há, ainda, que se considerar que o tamanho desse pé-de-meia é variável de acordo com o sonho, ambição ou falta de sensibilidade social de cada um. Fazer pé-de-meia à custa do Estado, por exemplo, é o mesmo que à custa dos contribuintes. E estes, além de financiar o pé-de-meia de alguns privilegiados, deveriam ter antes o direito, também assegurado, de fazer o seu próprio pé-de-meia.
Quando se trata de reforma, é natural que se tente corrigir o que está errado. E no Brasil dos privilégios e diferenças sociais, tem muita coisa errada, mesmo nas leis que regem os direitos e contratos que – repetimos – é bom que sejam respeitados enquanto vigentes, incluindo nessa categoria também aqueles “contratos” ou regras básicas que nos colocam todos iguais perante as leis, exatamente com a finalidade de impedir injustiças. O que o ministro quer é reformar sem escrever novos contratos, mais justos e consentâneos com a nossa realidade. Em outras palavras, manter esse círculo vicioso que pereniza o erro porque decorrente de lei, e mantém a lei em função de um direito adquirido para quem, inclusive, sequer entrou ainda no circuito dos tais direitos…
Juízes, magistrados e ministros não merecem essa pecha genérica de mercenários, como se tudo se resumisse a interesses mesquinhos advindos do vil argent. Tem muita gente – e provavelmente a maioria – que é atraída para a carreira por outros motivos, bem mais nobres que essa fome cada vez maior de construir pé-de-meia ou colecionar contracheques. A fome de justiça, por exemplo, é uma delas. E os que assim raciocinam batem de frente com os que se demonstram incapazes de indignar-se com a defesa de um tema que – este sim – prejudica uma carreira e uma corporação que não merece ser vista à luz desse filtro em que o tilintar dos níqueis é, sempre, o mais importante.