Acima da lei

É notícia velha, mas vale a pena um pouco de reflexão sobre o mau significado que ela encerra: antigos e atuais candidatos pelo Brasil afora devem à sociedade mais de R$ 40,6 milhões – o valor total das multas aplicadas pela Justiça Eleitoral e não pagas pelos infratores ao longo das últimas campanhas eleitorais. São vereadores, prefeitos, ex-prefeitos e ex-candidatos a prefeito, deputados estaduais e federais, senadores, ex-governadores e outros mais, na ativa ou na reserva, alguns deles em situação de mando e comando sobre a vida do País, como o presidente da Câmara Federal, João Paulo Cunha. Contam que o candidato a prefeito Paulo Maluf, de São Paulo, deve exatos R$ 228 mil, referentes a multas da campanha de 2002 e, como na canção, “tá nem aí”…

O valor, conforme se afirma publicamente, seria suficiente para estar inscrito na dívida ativa da União. Mas é cobrado em ações de execução promovidas pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. Cobrado não é o termo; tentam a cobrança. Os devedores não pagam e, quando percebem que a situação aperta, recorrem a um recurso que só eles, os políticos, têm: fabricam uma lei garantindo a anistia. E bola para frente com novas infrações para, lá adiante, repetir a façanha e o mau exemplo.

São multas de ofensas à lei eleitoral, parecidas – e algumas até mais graves – com aquelas aplicadas automaticamente no trânsito por meios eletrônicos. O texto diz que é proibido fazer barulho fora de hora, colar cartaz em local não permitido, sujar a cidade ou, mesmo, iniciar a campanha antes do tempo (coisa que todo mundo faz), que corresponderia ao avanço de sinal. Maior parte das multas decorre de propaganda irregular, como a pichação de muros particulares sem a autorização do proprietário, a fixação de banners e cartazes em locais que prejudicam a visão dos sinais de trânsito e coisas do gênero.

Eleitos ou não, os candidatos multados deixam o barco correr, fazendo pouco caso da Justiça Eleitoral e da legislação em vigor. Alegam, por exemplo, que os “santinhos” foram colados sem o conhecimento deles e coisas do gênero. Ou que o juiz que determinou a aplicação da multa foi arbitrário, para não dizer do contra. Sabem que basta “vontade política” para passar a borracha por cima e zerar a conta. Agora mesmo, um projeto de lei anistiando devedores, que foi retirado de pauta em maio, aguarda vez para voltar ao debate do Congresso depois do recesso. O projeto, naturalmente, tem o apoio de todos os partidos. Quando menos a sociedade espera, e sem alarde, o texto vira lei e pronto. Outra vergonha.

Já não basta a disposição legal segundo a qual o dinheiro das multas – se, e quando pagas, naturalmente – volta para o bolso dos próprios contraventores. Melhor, para os partidos. Isso mesmo, em vez de ir para alguma obra de caridade ou para a própria Justiça Eleitoral, ajudando a pagar os gastos com as eleições, o dinheiro eventualmente recolhido das multas aplicadas aos candidatos reverte para os partidos, ao tal Fundo Partidário. Duas, pois, as imoralidades: as sucessivas anistias, que fazem com que os devedores sejam renitentes, e a destinação dos recursos eventualmente pagos, que voltam aos bolsos originais. Um reverso do popular dito “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Isto é, de qualquer jeito, a grana fica em casa.

Há leis que colam e leis que não colam, costuma-se dizer. Se não colam, geralmente acontece por desobediência civil generalizada a uma norma que, caindo em desuso ou superada pela dinâmica social, pouco significa para os cidadãos. Há, também, leis para inglês ver, como é o caso. Pena que isso envolva o Poder Judiciário, que é mantido com os recursos dos tributos que todos pagamos. Pena, também, que isso signifique um mau exemplo que vem de cima, além de estabelecer uma linha divisória no seio da sociedade: uns são constrangidos a pagar multas, nem sempre justas, aplicadas em outras áreas; outros não se constrangem de usar a representação popular em causa própria, como se estivessem – e a evidência demonstra que de fato estão – acima da lei.

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