Acidentes de trânsito em cruzamento não sinalizado

O atual Código de Trânsito Brasileiro, ratificando o inciso “IV” do artigo 13.º da Lei n.º 5.108/1966, fulminou a teoria do eixo-médio ao estabelecer uma nova regra – para o cruzamento não sinalizado – que confere preferência ao motorista proveniente da direita.

Regra que, no entanto, vem sistematicamente sendo mal interpretada pelo Poder Judiciário, que, ao aplicar o referido artigo, voltou a estimular a imprudência atribuindo culpa por um fato aleatório: é culpado quem procede da esquerda, independentemente de os motoristas pararem ou não seus veículos antes de iniciar o cruzamento.

Aplicar simplesmente a teoria denominada culpa contra a legalidade na análise de acidentes de trânsito representa o desprezo total dos elementos que compõe a estrutura da culpa, haja vista eliminar o nexo causal entre a culpa e o dano.

Tanto é verdade, que os americanos adotam a teoria “last chance”, que exige análise do comportamento dos motoristas independentemente da norma legal aplicável: é culpado quem tivera a maior chance de evitar o acidente, mas nada fez para evitá-lo.

Por aí se vê que a teoria da legalidade somente deve ser aplicada quando a conduta do agente se constitui na causa primária do acidente, equivalendo ao reconhecimento da própria culpa subjetiva.

Daí que é importante afirmar que, neste caso, a lei deve atribuir preferência absoluta, e não relativa. Sem esquecer, no entanto, que, mesmo diante da preferência absoluta, o legislador não autorizou o condutor a provocar acidentes, obrigando-o a dirigir com a atenção e os cuidados necessários para evitá-los.

No caso em tela, a fim de demonstrar o equívoco de interpretação do Poder Judiciário, é indispensável pincelar algumas palavras sobre a literalidade do artigo 29, inciso “III”, alínea “c”, do Código de Trânsito Brasileiro.

Com a interpretação gramatical, procurar-se-á evidenciar o aparente descompasso que há entre o conteúdo do mencionado inciso e o dessa alínea. Para isso, abaixo se segue a transcrição desses dispositivos:

“III – quando veículos, transitando por fluxos que se cruzem, se aproximarem de local não sinalizado, terá preferência de passagem:
A, b) omissis;
c) nos demais casos, o que vier pela direita do condutor;”

Da leitura literal da alínea a e da b, não resulta nenhum problema, uma vez que a norma se revela por si. Tanto em uma como na outra, seja somente em um fluxo proveniente de rodovia, seja no caso de rotatória, terá preferência sempre o que estiver circulando por uma ou por outra por tratar-se de preferência absoluta, que obriga o motorista não preferente a tomar todos os cuidados antes de ingressar no cruzamento.

Por outro lado, concernente à alínea “c”, a interpretação pelo Poder Judiciário na grande maioria dos julgados não compreende satisfatoriamente o sentido da norma: Se se ativer à literalidade do texto, o veículo que vier pela direita do condutor terá sempre preferência. Mas será que essa interpretação textual condiz com a realidade?!

Para entender essa alínea, é imprescindível ir além de sua literalidade, explorando outros meios de interpretação. O interprete não pode perder de vista o fato de o substantivo veículo, no inciso “III”, estar no plural {em início de período composto por subordinação oração subordinada adverbial (interpretação gramatical)} -, além de ter o dever de extrair dessa alínea norma que não fira os fins axiológicos a que visa o Código de Trânsito Brasileiro (interpretação sistêmica).

O inciso “III” do artigo 29 do Código de Trânsito consigna que “quando veículos, transitando por fluxos que se cruzem, se aproximarem de local não sinalizado, terá de preferência de passagem”. Pela leitura ligeira da alínea “c”, facilmente se completa esse trecho final terá preferência de passagem, pelo sentido literal da alínea c: Nos demais casos, sempre (advérbio acrescentado por nós) o que vier pela direita do condutor.

No entanto, há incompatibilidade aparente entre o que diz o inciso “III”, e o contido na alínea “c”, porque, nesse inciso, em virtude de não estar no singular o substantivo veículo, que pertence à oração subordinada adverbial, o resto do trecho final terá preferência de passagem -, desse período composto por subordinação, e o seu complemento, dado pela alínea “c”, são influenciados por esse plural: Veículos a transitar por fluxos que se cruzam, ao se aproximarem de local não sinalizado, terá preferência de passagem, exceto nas situações expressas na alínea a e na b, o que sempre vier pela direita.

Preso à interpretação gramatical, a literalidade do que é explicitado pelo inciso “III” e a alínea “c” somente ocorrerá se veículos, em cada um dos fluxos que se cruzam, se aproximarem simultaneamente do local não sinalizado. Dessa forma, por haver mais de um veículo que se aproxima, ao mesmo tempo, do local não sinalizado, é que o que vier pela direita terá preferência. Ao que sem dúvida alguma se chega, se não se esquecer de que – estando no plural o substantivo veículo – há dever de adequar o conteúdo da alínea “c” com essa noção de pluralidade (quando veículos, transitando por fluxos que se cruzem, se aproximarem de local não sinalizado) e com a de SIMULTANEIDADE, que no caso é imprescindível (lembre-se que mais de um veículo tem de chegar ao mesmo tempo).

Logo, se não houver veículos que se aproximem ao mesmo tempo de local não sinalizado, já não será somente o que vier pela direita que terá preferência, mas sim o primeiro que se aproxime de local não sinalizado. Tudo como conseqüência direta da não-simultaneidade, que aliada ao plural contido no inciso “III” permite que se chegue ao fato de que, ainda que haja veículos em cada um dos fluxos que se cruzam, o que chegar primeiro terá, de certo, preferência de passagem, independentemente de estar à direita ou não.

Esse é o entendimento que se afina com a interpretação gramatical e com os fins propugnados pelo Código de Trânsito Brasileiro, já que seria absurdo compreender que, sob qualquer condição, o veículo que viesse pela direita teria sempre preferência mesmo que já houvesse veículo iniciando o cruzamento. Referida conclusão feriria a gramática e os princípios sobre os quais se erigiu o Código de Trânsito Brasileiro, que possibilitam não haver injustiças no caso concreto.

Qualquer interpretação diferente restabeleceria a teoria do eixo-médio, mas com um agravante: culpado seria sempre o condutor que não contasse com a sorte de estar à direita de motorista que parasse seu veículo ao iniciar o cruzamento não sinalizado(1). Donde, manda-se às favas o direito, premiando a “sorte” como fundamento da culpa: coisa lamentável e, acima de tudo, meio de incentivar à imprudência.

Conclusão:

Sobre o acidente em que os motoristas iniciam simultaneamente o cruzamento não sinalizado, a culpa deve ser reciprocamente distribuída, eis que neste caso ambos desrespeitaram as regras do Código de Trânsito Brasileiro, que determinam dirigir com os cuidados indispensáveis à segurança do trânsito, especialmente ao se aproximarem de cruzamento não sinalizado.

Comprovado que um dos veículos já havia ingressado no cruzamento com antecedência, é culpado o veículo abalroador, porquanto previsível e evitável em face do dever de cuidado objetivo, a exemplo do que ocorre com a presunção judicial de culpa do condutor que colide com a traseira do veículo que segue adiante, situação a que são aplicáveis as regras dos artigos 28 e 44 do Código de Trânsito Brasileiro.

Mas, ao se aproximar de cruzamento não sinalizado, devem os motoristas que ainda não estão na direita(2) e que não sabem se pelo lado esquerdo virá outro veículo reduzir a velocidade antes de iniciar o cruzamento a fim de determinar com isso a preferência de passagem.

Somente assim – por parar antes de iniciar o cruzamento -, pode um dos motoristas exercer, se for o caso, o direito de preferência, caso se encontre à direita do outro que também pretenda efetuar o cruzamento.

Constata-se, então, que, o Poder Judiciário, ao aplicar corretamente as disposições do Código de Trânsito Brasileiro, e, em especial, a regra do artigo 29, “III”, letra “c” em harmonia com os artigos 28 e 44, estará não apenas cumprindo seu verdadeiro papel, mas também contribuindo para a diminuição da violência no trânsito. Sem contar que promoverá ainda a educação de seus jurisdicionados, com reflexos, inclusive, em todos os outros setores.

O indivíduo – o mais bem educado, ou o desprovido de instrução formal pode, desse modo, por conhecimento prático, direcionar suas ações aos fins colimados pelo Direito, porque da Jurisdição, atividade pela qual o Estado-juiz diz o direito, não emana coisa sem sentido, mas sim norma concreta que se coaduna com dois princípios essenciais ao Estado Democrático de Direito: o da Segurança Jurídica e o da Certeza do Direito.

Notas:

(1) “EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL. REPARAÇÃO DE DANOS. ACIDENTE DE TRÂNSITO. CRUZAMETO NÃO SINALIZADO. PREFERÊNCIA RELATIVA. PROVA ADMINISTRATIVA. CULPA RECÍPROCA. Em acidente de trânsito ocorrido em cruzamento não sinalizado, a preferência do que vier da direita é relativa. Ao se aproximarem do cruzamento, os motoristas dos veículos, vindo da direita e da esquerda, devem moderar a velocidade, de forma que possam imobilizar seu veículo, se a preferência de passagem não se resolver em seu favor. II.) Comprovado, pela prova administrativa, sem outra que fosse produzida nos autos, que ambos os motoristas agiram culposamente e inexistindo preponderância da ação culposa, aplica-se o princípio da concorrência da culpa, com a divisão da indenização em partes iguais.” (Ac. 25852, de 17/3/1987, Relator: Juiz Accácio Cambi, DJ/PR de 15/4/1987, página 9/10). (2) Lembre-se que a presunção natural é por esse lado.

Antonio Carlos Cantoni e Jefferson Carlos Rabelo são advogados.

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