Por muito tempo a jurisprudência firmou posição de que o empregado só faz jus à indenização civil resultante de danos materiais e morais provenientes do acidente de trabalho, caso obtenha êxito na prova de culpa grave ou dolo do empregador, perante a Justiça Estadual. Não havendo comprovação culposa, não há condenação, de acordo com a aplicação da denominada teoria subjetiva aquiliana ou delitual.
Esta corrente jurisprudencial, dominante até pouco tempo atrás, fundamentava-se nas Constituições pretéritas. É que pelas Cartas Constitucionais de 1946, 1967 e Emenda n.º 1 de 1969, a competência para apreciar dano material originário de acidente do trabalho era expressamente atribuída à Justiça Comum, que o enquadrava como responsabilidade extracontratual.
Oportuno transcrever o art. 142 da CF/67 e alterações dadas pela Emenda n.º 01/69 e Emenda n.º 07/77:
Art. 142 – Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregadores e empregados e, mediante lei, outras controvérsias oriundas de relação de trabalho.
§ 2.o Os litígios relativos a acidentes do trabalho são da competência da justiça ordinária dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, salvo exceções estabelecidas na Lei Orgânica da Magistratura Nacional.
Como se vê, havia previsão constitucional expressa para a Justiça Comum apreciar litígios relativos a acidentes do trabalho, ao ponto do STF, à época, editar a Súmula 501:
“Compete à Justiça ordinária estadual o processo e o julgamento, em ambas as instâncias, das causas de acidente do trabalho, ainda que promovidas contra a União, suas autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista.”
Com a promulgação da Carta de 1988, a situação se modificou. O artigo 114 da CF/88, correspondente ao art. 142 da CF/67, fixa a competência material da Justiça do Trabalho para examinar o tema(1).
Raimundo Simão de Melo, assim observa o fenômeno:
Como as Constituições de 1946, 1967 e 1969 diziam expressamente que os dissídios relativos a acidentes do trabalho eram da competência da Justiça Ordinária, ninguém ousava querer atribui-la à Justiça do Trabalho, a não ser de lege ferenda, porque, embora inquestionavelmente a controvérsia seja de natureza trabalhista, em matéria de competência absoluta em razão da matéria, não se pode decidir por analogia e nem fazer interpretação extensiva. Hoje, entretanto, a situação é outra … a competência é da Justiça do Trabalho quando o pleito de indenização acidentária (art. 7.º., XXVIII, CF) for dirigido ao empregador, que tenha, por dolo ou culpa, causado o infortúnio(2).
Nesse diapasão, de forma oposta à tradição das Constituições Federais pretéritas, a de 1988 deixou, adrede, de reproduzir o sentido da regra do § 2.º. do art. 142 da CF/67; fê-lo, obviamente, porque o constituinte não quis mais destinar à Justiça Comum dos Estados os litígios atinentes aos acidentes do trabalho.
Ao proceder assim, a Carta da República de 1988 rompeu com a “tradição dogmática” de que a Justiça do Trabalho não poderia se imiscuir em questões outras que não os direitos tipicamente trabalhistas. Observa-se que o § 3.o., acrescido ao art. 114, reforça a novel opção axiológica ao prever a execução de contribuições previdenciárias perante o órgão judicante trabalhista(3).
Ocorre que, mesmo após a modificação trazida pela CF/88, há quem continue a sustentar a competência da Justiça Comum, mediante interpretação equivocada do art. 109, I, da atual Carta da República, in verbis:
“Art. 109 – Aos juízes federais compete processar e julgar:
I – as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;”
Encabeçada por boa parte dos ministros do STJ, os seqüazes da referida corrente entendem que, em não havendo competência da Justiça Federal para julgar a lide acidentária, é da Justiça Estadual a competência residual para tanto. O tema é, inclusive, objeto da Súmula 15 do STJ: “Compete à Justiça Estadual processar e julgar os litígios decorrentes de acidentes do trabalho”(4).
Sustenta-se, ainda, que o art. 109, I, exclui as causas de acidente do trabalho e aquelas sujeitas à Justiça do Trabalho, o que, segundo essa corrente, corrobora que a lide acidentária não se confunde com a trabalhista:
“Compete à Justiça Comum processar e julgar ação de indenização decorrente de infortúnio trabalhista proposta por trabalhador contra empregador. Exegese do art. 109, inciso I, da Constituição Federal. Conflito conhecido para declarar a competência da Justiça Comum do Estado”. (STJ, conflito de competência n. 22.707-SP, 2.ª. S, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, in DJ-U, 05/04/99).
A afirmação de que a Justiça Comum Estadual detém competência residual é correta, porém tais exegetas incorrem em erro quando nela incluem os litígios acidentários civis. Deveras, o que compõe a competência residual da Justiça Comum não são os litígios acidentários contra o empregador, mas tão-somente aqueles movidos contra o INSS, os quais incidem sobre os seguintes benefícios: a) aposentadoria por invalidez decorrente de acidente do trabalho; b) auxílio-doença oriundo de acidente do trabalho; c) auxílio-acidente.
Eis, dessa feita, a dicção do art. 129, II, da Lei n. 8213/91, in verbis:
“Os litígios e medidas cautelares relativos a acidentes do trabalho serão apreciados:
I – na esfera administrativa, pelos órgãos da Previdência Social, segundo as regras e prazos aplicáveis às demais prestações, com prioridade para conclusão; e,
II – na via judicial, pela Justiça dos Estados e do Distrito Federal, segundo o rito sumaríssimo, inclusive durante as férias forenses, mediante petição instruída pela prova de efetiva notificação do evento à Previdência Social, através de Comunicação de Acidente do Trabalho – CAT.”
Com o fito de demonstrar a incoerência da interpretação pretoriana, Roland Hasson, de maneira profícua, argumenta ser inegável que o art. 129 dirige-se apenas aos litígios que envolvem o INSS:
“Tanto é verdade que o seu próprio inciso primeiro determina que as demandas relativas a acidentes do trabalho serão apreciadas, na esfera administrativa, pelos órgãos da Previdência Social. Ora, como admitir que versa também sobre a Justiça do Trabalho, se é impossível que o trabalhador acidentado demande administrativamente contra o empregador, buscando reparação fundada em responsabilidade não previdenciária?”(5)
Ainda se fosse assim, prossegue Hasson, as lides relativas à estabilidade acidentária previstas no art. 118, da Lei n. 8213/91, seriam da alçada da Justiça Comum e não da Justiça do Trabalho!(6). Aqui, rememore-se que, diariamente, a Justiça Especializada julga tais litígios sem qualquer glosa quanto à sua competência material, fato que ratifica a tese ora esposada.
Data venia é artificial a fixação da competência da Justiça Comum, especialmente quando o que se vê na prática é o acidente do trabalho resultante do descumprimento de obrigação contratual, como, por exemplo, a de fornecer gratuitamente equipamento de proteção individual, prevista no art. 166 da CLT:
“Civil. Acidente do trabalho. Falta de fornecimento de materiais de segurança. Culpa do empregador. É da jurisprudência da Corte que na indenização acidentária de direito comum basta que o empregador ou seus prepostos tenham agido com culpa, mesmo leve, para exsurgir a responsabilidade civil”.(Apelação cível n. 49.343, 3.ª. C. Cível, julgado em 05/11/96, TJ-SC. Rel. Des. Amaral e Silva).
Geralmente, a referida culpa patronal provém da inobservância das normas de segurança, higiene e saúde do trabalho contempladas em lei, dentre elas aquelas inseridas no Capítulo V da CLT, intitulado Da segurança e da medicina do trabalho, pertencente ao Título II, Das normas gerais de tutela do trabalho. Dos artigos 154 a 223 da CLT verificam-se inúmeras obrigações destinadas aos empregadores, com o escopo de coibir o acidente de trabalho e as doenças profissionais. Assim, quando a empresa descumpre tais obrigações concernentes à segurança do trabalho incorre em inexecução contratual.
Na sábia advertência de Wagner Giglio, a controvérsia fundada em acidente do trabalho sempre foi, inquestionavelmente, de natureza trabalhista. Logo, “não havia, como não há, razão cientificamente válida para excluí-la da competência da Justiça do Trabalho. Somente o interesse escuso das companhias seguradoras justificava essa anomalia, no passado. Hoje, com a integração do seguro social no Instituto da Previdência, nem mesmo essa explicação subsiste”(7).
Felizmente, o constituinte de 1988 corrigiu a distorção jurídica, deixando, por acinte, de incluir na competência da Justiça Comum a lide acidentária. Assim, considerando inexistir, doravante, qualquer norma conservando a exclusão da Justiça Trabalhista, é induvidosa a competência material do órgão judicante especializado.
Mais que isto: parece-nos emblemático o posicionamento da norma que assegura o direito à reparação civil acidentária no rol dos direitos tipicamente trabalhistas – artigo 7.o., XVIII, da CF/88 – fato que reforça a competência material da Justiça do Trabalho.
Com base nessa inferência, algumas turmas do STF vêm admitindo a competência material da Justiça do Trabalho para apreciar pedidos voltados à preservação do meio ambiente do trabalho.
COMPETÊNCIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONDI-ÇÕES DE TRABALHO. Tendo a ação civil pública como causa de pedir disposições trabalhistas e pedidos voltados à preservação do meio ambiente do trabalho, e portanto, aos interesses dos empregados, a competência para julgá-la é da Justiça do Trabalho. (STF, Rel. Min. Marco Aurelio, RE 20620/MG, DJU, 17/09/99)
Nesse compasso, espera-se que, em breve tempo, tal entendimento jurisprudencial da excelsa corte se uniformize.
Recentemente, a 4.ª. Turma do TST, com acerto, pronunciou-se sobre o tema avocando para a Justiça do Trabalho a competência material para solver lides que envolvam danos materiais relacionadas a acidente do trabalho:
“Assinale-se ser pacífica a jurisprudência desta Corte sobre a competência do Judiciário Trabalhista para conhecer e julgar ações em que se discute a reparação de dano moral praticado pelo empregador em razão do contrato de trabalho. Como o dano moral não se distingue ontologicamente do dano patrimonial, pois em ambos se verifica o mesmo pressuposto de ato patronal infringente de disposição legal, é forçosa a ilação de caber também a esta Justiça dirimir controvérsias oriundas de dano material proveniente da execução do contrato de emprego. Nesse particular, não é demais enfatizar o erro de percepção ao se sustentar a tese da incompetência material desta Justiça com remissão ao artigo 109, inciso I, da Constituição. Isso porque não se discute ser da Justiça Federal Comum a competência para julgar as ações acidentárias, nas quais a lide se resume na concessão de benefício previdenciário perante o órgão de previdência oficial. Ao contrário, a discussão remonta ao disposto no artigo 7.º, XXVIII, da Constituição, em que, ao lado do seguro contra acidentes do trabalho, o constituinte estabeleceu direito à indenização civil deles oriundos, contanto que houvesse dolo ou culpa do empregador. Vale dizer que são duas ações distintas, uma de conteúdo nitidamente previdenciário, em que concorrem as Justiças Federal e Comum, e outra de conteúdo trabalhista, reparatória do dano material, em que é excludente a competência desta Justiça diante da prodigalidade da norma contida no artigo 114 da Constituição Federal. Recurso não conhecido”. (TST, RR n. 528460/99, 17.ª Região, 4.ª Turma, Rel. Min. Antônio José de Barros Levenhagen. DJ de 10-05-2002)
Tal decisão do TST é consentânea com a origem histórica da obrigação de indenizar a vítima do acidente no trabalho. Nas palavras de De Page ditas há mais de um século: no contrato de trabalho ocorre a obrigação de seguridade, logo, sobrevindo o acidente, o empregador tem o dever de indenizar, como efeito de uma obrigação contratual(8).
Curso sobre reparação do dano trabalhista e acidentário
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NOTAS
(1) “Art. 114 – Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos municípios, do Distrito Federal, dos estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas”.
(2) MELO, Raimundo Simão de. Meio ambiente do trabalho: prevenção e reparação – Juízo competente. In: Repertório IOB de jurisprudência, n. 13/97, caderno 2, p. 250.
(3) Através da Emenda Constitucional n.º 20/98, foi acrescido o parágrafo terceiro ao art. 114, atribuindo expressa competência à Justiça do Trabalho para executar as contribuições previdenciárias oriundas da relação de emprego e que sejam objeto de demandas judiciais: “§ 3.o – Compete ainda à Justiça do Trabalho executar, de ofício, as contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir.”
(4) O referido verbete foi editado em 14/11/90 no DJU.
(5) HASSON, Roland. Acidente do trabalho & Competência. Curitiba: Juruá, 2002, p. 162/163.
(6) HASSON, Roland. Op. cit., p. 163.
(7) GIGLIO, Wagner D. Direito processual do trabalho. 8.a ed. São Paulo: LTr, 1994, p. 77. Procede a desconfiança do autor de que “somente o interesse escuso das companhias seguradoras justificava essa anomalia, no passado” se considerarmos que até o advento da Lei n.º 5316/67, existia o contrato de seguro obrigatório, outorgando a responsabilidade para uma seguradora privada. Havia, pois, um “interesse” destas seguradoras privadas em alijar a Justiça do Trabalho, em tese mais célere e social do que a Justiça Comum.
(8) Apud: PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 9.a ed. RJ: Forense, p. 266.
José Affonso Dallegrave Neto é advogado, mestre e doutor pela UFPR, professor do curso de Pós-Gradução da FIC.