A segurança é uma das garantias fundamentais e está incluída na Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB, no artigo 5.º, caput: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes…”[grifo nosso].
Ela, a segurança, pode ser expressada de várias formas, inclusive como segurança jurídica nas relações entre as pessoas ou entre estas e o Estado. Mas, interessa pontuar o direito ao acesso à segurança pública e pessoal, no sentido de tornar incólume tanto a integridade física e psíquica das pessoas, como também a sua integridade patrimonial.
Por isso que, ao estabelecer as formas de “Defesa do Estado e das Instituições Democráticas” (Vide Título V, da CRFB) é que o legislador constitucional incluiu o Capítulo III “Da Segurança Pública”, contendo as grandes linhas constitucionais dos aparelhos formais de segurança no Brasil. Esse molde primário, que agora possui status constitucional, diferentemente da Constituição Reformada, está todo formatado em apenas um artigo – o 144 – incluindo 9 (nove) parágrafos e, também, 9 (nove) incisos.
Diz o artigo 144, caput: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos…”
Importante frisar que esse standard não afeta exclusivamente o Estado, seus aparelhos de repressão ou prevenção, mas inclui aqui de forma direta e explícita as pessoas e a comunidade em geral, não só como possuidoras do direito ao acesso à segurança, mas, também, atribuindo-lhes o dever e a responsabilidade em contribuir para com os órgãos formais do Estado.
Por isso, exemplificando, a possibilidade jurídica de qualquer pessoa do povo poder prender quem quer que seja – existem exceções de pessoas que são imunes à prisão, em virtude da sua condição pessoal ou ilícito penal cometido – desde que encontradas praticando uma infração penal, estando em flagrante delito.”
Tal hipótese pode ser constatada ao se observar o artigo 301, do Código de Processo Penal – CPP, que diz: “Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.”
O dever constitucional também se estende quando as pessoas intervêm passiva ou ativamente no Processo Penal. Seja nas delegacias, prestando informações ao delegado de polícia; seja na esfera judicial, perante o juízo da comarca.
Diga-se que essa participação das pessoas da comunidade contribui para um dos objetivos fundamentais da realização dos trabalhos da polícia judiciária, qual seja, a tarefa de identificar o autor ou autores da infração penal praticada, assim como e se existir, examinar e colher os vestígios, as provas deixadas pelo agente criminoso. Na esfera judicial, onde o apontado autor da infração penal será formalmente processado, cabendo o mais amplo direito à sua defesa, a contribuição das pessoas da comunidade também é de enorme valia, uma vez que ali serão validadas todas as provas para condenar o acusado ou absolvê-lo, fechando-se o ciclo da formação da culpa.
Essa participação é comumente conhecida como testemunho, desacreditado por muitos, em função da herança altamente burocrática, que fazem com que as pessoas em geral sintam-se desestimuladas em prestar informações tanto à autoridade policial quanto à autoridade judiciária. Em muitos casos com absoluta razão, uma vez que perdem-se horas e horas na colheita de depoimentos, assim como há um clima de hostilidade nas audiências em que as pessoas são colocadas frente a frente com o suposto autor da infração a que se busca examinar.
Não esquecendo que tais audiências são adiadas sem prévio aviso às pessoas que ali estão contribuindo para o deslinde do caso. Por isso se diz que, nos dias de hoje, é mais uma obrigação, com tonalidade coerciva, participar no Processo Penal, do que uma intervenção voluntária, democrática. Assim é que o legislador informa que “a testemunha não poderá eximir-se da obrigação de depor” (vide art. 206, do CPP), porém restringe uma série de pessoas de fazê-lo, em função da sua proximidade com as partes.
Não é descabida a preocupação das testemunhas. A chamada Lei de Proteção às Testemunhas (Lei 9.807, de 13 de julho de 1999), embora meramente simbólica, está aí, existindo algumas pessoas “protegidas” por esse sistema criado pelo governo federal e incluído no Plano Nacional de Segurança Pública. Esse programa vem sendo severamente criticado por alguns autores nacionais, sustentando a sua não-operacionalidade, faltando requisitos mínimos para que o mesmo funcione de forma digna. Existem notícias de que as pessoas submetidas à proteção estatal moram em condições miseráveis de subsistência, faltando recursos básicos para moradia, higiene pessoal, alimentação, dentre outros fatores que só desacreditam, no Brasil, essa forma especial de atuação do sistema judiciário.
É bom dizer que a participação comunitária não se restringe ao ambiente exclusivo do Processo Penal, seja na fase da informatio criminis, seja na fase da persecutio criminis in juditio. Vai muito mais além, cabendo às pessoas também participar na gerência dos órgãos públicos responsáveis pela segurança pública. Refere-se, aqui, aos Conselhos Comunitários de Segurança, que foram criados dentro de uma filosofia voltada à matriz da “Segurança Orientada pela Comunidade”.
De fato, embora haja muita resistência dos aparelhos formais, que detém a força legítima e autorização legal para o uso da violência, a participação comunitária veio para ficar, apresentando-se de maneira irreversível e deve ser encarada como um up grade institucional. Frise-se que todos – hoje, mais do que nunca – estão absolutamente envolvidos pela questão da segurança.
Fala-se, em tom de exigência, do aprimoramento técnico e científico das polícias, de uma melhor ordem de resultados, caracterizados por ações que visem tornar os trabalhos mais eficientes. Ressalta-se que a Emenda Constitucional 19/98 acrescentou, como axioma fundante da Administração Pública, o Princípio da Eficiência. É nessa esteira de raciocínio que os trabalhos policiais doravante serão orientados e cobrados. O discurso da escassez humana e de material tende a esvaziar e tomar corpo as cobranças da comunidade para resultados objetivos e controlados.
O exemplo do Estado de São Paulo – mais especificamente centrado na cidade de São Paulo – é pontual. Uma vez que se criou todo um sistema de coleta de dados, pela via da informática, em que são analisados por um setor que faz triagem para que, posteriormente, se possa tomar decisões operacionais, baseadas em tais números.
Alia-se a isso o fato de que há publicação oficial de tais cifras da violência, implicando tanto no risco de críticas e alarme na opinião pública – principal temor dos governantes – mas trazendo embutido algo maior e que deveria ser seguido pelas demais unidades da Federação, porque traduz uma idéia de transparência.
Assim, a participação da comunidade nos negócios da segurança pública depende, inicialmente, do rompimento das barreiras antepostas pelos órgãos formais de controle e, num segundo plano, na total transparência dos trabalhos desenvolvidos pelas polícias, o que implica a priori na divulgação dos números oficiais da violência, ainda que indesejados e inoportunos aos governantes.
Sérgio Inácio Sirino é corregedor auxiliar da Polícia Civil do Estado do Paraná, especialista em Direito pela UFPR e mestrando em Ciências Jurídico-Criminais, pela Universidade de Coimbra, em Portugal.