Introdução: conceito de acesso à justiça
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer o conceito do tema que nos propomos a tratar. Quando se pensa em acesso à justiça, muitas vezes, tem-se uma visão estreita do tema, limitando-se-o apenas ao seu aspecto formal, qual seja, o de ter a possibilidade de ingressar em juízo para defender um direito de que se é titular. Este aspecto, de inegável importância – pois, sem ingressar com a ação, é impossível obter a realização do direito ameaçado ou violado – corresponde ao conceito de acesso à justiça em sentido formal, mas não abarca o seu sentido material, qual seja, o acesso a um processo e a uma decisão justas. Há quem fale, ainda, como Kazuo Watanabe, em acesso a uma ordem jurídica justa, numa visão mais ampla de efetividade do direito.
Como é sabido, todo o direito processual nada mais é do que um instrumental posto a serviço da realização do direito material, de modo que nada vale termos normas de natureza material extremamente avançadas, como são, por exemplo, no Brasil, de um modo geral, as normas previstas na Constituição Federal em matéria de proteção a direitos, ou a legislação ambiental em vigor ou, ainda, o Código de Defesa do Consumidor ou o Estatuto da Criança e do Adolescente. Todas estas normas jurídicas têm conteúdo extremamente avançado, buscando realmente a transformação da sociedade brasileira em uma sociedade mais justa e solidária. Entretanto, de nada adianta a existência dessas normas se não existirem mecanismos aptos a atuarem em caso de sua violação. É aí que entra o acesso à justiça, pois precisamos de um instrumento que nos garanta que, em caso de violação ou simples ameaça de violação a nossos direitos, temos aonde nos socorrer, podemos exigir o cumprimento forçado da norma violada ou a atuação da sanção pelo descumprimento.
É intuitivo, neste sentido, que não basta ter a mera possibilidade de reclamar pela violação de um direito, mas é necessário que a apreciação desta questão seja feita de forma ágil e justa, sem macular, contudo, a garantia do contraditório, isto é, dando-se oportunidade à outra parte no litígio de apresentar suas alegações e provas correspondentes.
É daí que decorre a noção de acesso a um processo e a uma decisão justas. De nada adianta poder exercer o direito de ação se a solução reclamada vier tarde demais ou for uma decisão injusta, insatisfatória para resolver o litígio.
II – Dos obstáculos para o acesso à justiça
Os estudiosos do tema, como Mauro Cappelletti e Bryant Garth, em sua obra clássica, e, no Brasil, entre outros, Luiz Guilherme Marinoni, apontam, basicamente, três ordens de obstáculos para o acesso à justiça: (a) obstáculos de natureza financeira, consistentes nos altos valores praticados para a cobrança de custas processuais e honorários advocatícios; (b) obstáculos temporais, consubstanciados na grande morosidade característica do Poder Judiciário, seja por dificuldades institucionais, relacionadas à insuficiência do número de magistrados e de servidores, seja em razão da complexidade do nosso sistema processual, que permite a interposição infindável de recursos; (c) obstáculos psicológicos e culturais, consistentes na extrema dificuldade para a maioria da população no sentido de até mesmo reconhecer a existência de um direito, especialmente se este for de natureza coletiva, na justificável desconfiança que a população em geral (e em especial a mais carente) nutre em relação aos advogados e ao sistema jurídico como um todo e, ainda, na também justificável intimidação que as pessoas em geral sentem diante do formalismo do Judiciário e dos próprios advogados.
Sem sombra de dúvida, a primeira e a terceira ordem de obstáculos elencadas são as que impedem até mesmo o acesso formal ao Judiciário, ao passo que os obstáculos de natureza temporal impedem, certamente, que se obtenha um processo justo e, poderíamos acrescentar, a descrença que existe na população em relação ao aparato jurisdicional como um todo decorre também de um notável descompromisso de grande parte dos integrantes do Poder Judiciário em relação à justiça de suas decisões, seja por questões estruturais (falta de tempo e de recursos para se dedicar aos processos como seria necessário), seja por questões de falhas na formação dos magistrados, que não são treinados para ter em mente sempre a prestação de um serviço jurisdicional de qualidade à população, mas têm, em sua maioria, uma bagagem jurídica eminentemente formalista e desvinculada dos aspectos éticos e sociais da função judicial.
III – As soluções possíveis
Para se garantir o acesso à justiça em sentido material, é necessário, portanto, enfrentar todas as ordens de obstáculos que foram identificadas.
Quanto aos obstáculos financeiros, a Constituição brasileira e a legislação infraconstitucional já trazem os mecanismos: (a) a assistência judiciária gratuita, regulada pela Lei n.º 1.060/50, garantindo a isenção no pagamento de custas processuais e o atendimento gratuito por advogado escolhido ou indicado pelo juiz; (b) a previsão da Defensoria Pública, a fim de prestar assistência jurídica integral, ou seja, preventiva e contenciosa, atendendo-se a consultas e representando judicialmente a população carente (arts. 5.º, LXXIV e 134 da Constituição Federal), de responsabilidade da União e dos Estados, já devidamente regulamentada pela Lei Complementar n.º 80/1994; (c) os Juizados Especiais estaduais e federais, disciplinados pelas Leis 9.099/95 e 10.259/2001, em que não há pagamento de custas nem, via de regra, de honorários sucumbenciais.
Quanto à advocacia dativa, consistente na atuação dos advogados indicados pelo juiz em benefício das pessoas carentes, deve-se ressaltar que o Estatuto do Advogado deixou claro que a gratuidade é para a pessoa carente, mas o advogado deve ser devidamente remunerado pelo Poder Público nestas situações (Lei 8.906/94, art. 22, § 1.º). De todo modo, como alega CAPPELLETTI, a atuação do advogado privado na representação das pessoas carentes é pontuada de dificuldades, pois não se trata de um profissional que esteja tradicionalmente preparado para atender este tipo de “cliente”, caracterizado por diversas limitações quanto à capacidade de articular os fatos e levantar as provas de seu interesse, de modo que é necessário, muitas vezes, o trabalho conjunto de outros profissionais, como psicólogo, assistente social, para se estabelecer uma comunicação eficaz, o que inexiste nos escritórios privados.
Já no que diz respeito à Defensoria Pública, que, em tese, é o espaço mais adequado para o atendimento das pessoas carentes, tanto por sua especialização neste tipo de trabalho quanto pela possibilidade de realização também das consultas, lamentavelmente os comandos constitucionais e legais que determinam a sua estruturação não vêm sendo cumpridos, sendo que a grande maioria dos Municípios brasileiros não conta com órgãos de Defensoria Pública e, quando conta, estes funcionam em condições mais do que precárias.
Se estes funcionassem realmente e, de preferência, se fossem situados em regiões próximas da população carente, teríamos um mecanismo apto a atacar tanto os obstáculos financeiros quanto alguns dos obstáculos psicológicos e culturais (reconhecimento da existência do direito, desconfiança e intimidação em relação aos advogados), à medida em que fosse se estabelecendo um vínculo de confiança entre os profissionais e a comunidade.
Outrossim, é preciso salientar que a mera estruturação das Defensorias Públicas não é suficiente para que a população tenha consciência de seus direitos, já que a muitos nem ocorre consultar um advogado para inúmeras questões cuja solução é, eminentemente, jurídica. Pensamos, assim, que seria necessário incluir no currículo obrigatório do ensino médio noções de direito, especialmente no que se refere a organização do Estado e direitos de natureza coletiva, para que a população vá tomando conhecimento da proteção legal de muitos de seus interesses de modo que ela passe a reivindicá-los.
É necessário, ainda, lembrar que a lacuna deixada pela ausência ou atendimento precário da Defensoria Pública tem sido preenchida em parte pelos Núcleos de Prática Jurídica, que, além de cumprirem importante papel social, propiciam o contato dos acadêmicos de Direito com a prática profissional.
Quanto aos obstáculos temporais, é preciso, de um lado, reconhecer os avanços já existentes em nossa legislação e, de outro, apontar a inevitável necessidade de mudança na legislação processual e na estrutura do Poder Judiciário. Entre os avanços já adotados, saliente-se os diversos mecanismos de tutela de urgência, quais sejam: (a) a previsão de procedimentos sumários especiais, como a ação monitória; (b) a possibilidade de antecipação de tutela em todo e qualquer processo de conhecimento, nos moldes do art. 273 do Código de Processo Civil, com a alteração da Lei 8.952/94; (c) o processo cautelar. Também deve ser lembrada a simplificação dos procedimentos adotados nos Juizados Especiais. Por fim, de extrema importância é a possibilidade de solução dos conflitos envolvendo direitos disponíveis pela arbitragem, sem a necessidade de homologação judicial, desde a Lei 9.307/96.
Entretanto, resta muito a fazer no sentido de simplificar o nosso sistema recursal, permitir a execução provisória como regra no processo civil, ao invés de manter-se o efeito suspensivo da apelação como regra (art. 520 do CPC) e, sobretudo, no sentido de aumentar-se o número de magistrados, pois é fato notório a sobrecarga de trabalho que se impõe aos membros do Judiciário brasileiro em todas as instâncias, inviabilizando por completo que a prestação jurisdicional se realize com qualidade e em tempo razoável, bem como no sentido de haver uma distribuição racional dos processos entre os magistrados, em benefício do princípio da isonomia.
Por fim, em relação à última ordem de obstáculos indicada, o legislador já fez muito neste sentido, quando torna obrigatória a tentativa de conciliação, bem como quando dá poderes de iniciativa ao juiz na produção das provas, sem que este fique limitado àquelas apresentadas pelas partes. Mas o que falta é, sobretudo, uma reciclagem na formação de nossos magistrados, no sentido de torná-los comprometidos com a pacificação social, capacitando-os para a tentativa de conciliação, hoje obrigatória também no processo civil, como sempre ocorreu no processo do trabalho, e também para a mediação, bem como dando-se possibilidade de que o juiz tenha uma especialização não apenas técnica, mas em todos os fatores (sociais, econômicos, psicológicos) subjacentes ao tipo de conflito submetido ao seu julgamento, tornando-os menos formalistas e mais humanos, mais comprometidos com a realização da justiça. De outra parte, a formação dos próprios advogados também deve ser repensada, valorizando-se a atividade de conciliação, bem como criando-se uma consciência ética no relacionamento com os clientes.
Isto leva a uma necessidade de reformulação do próprio currículo dos cursos jurídicos, mas isto é assunto para um outro artigo…
IV – Referências bibliográficas:
CAPPELLETTI, Mauro & GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1988.
MARINONI, Luiz Guilherme Bittencourt. Novas linhas do processo civil: o acesso à justiça e os institutos fundamentais do direito processual. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
_________ (org.). O processo civil contemporâneo. Curitiba: Editora Juruá, 1994.
RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Acesso à justiça no direito processual brasileiro. São Paulo: Acadêmica, 1994.
Luciane Moessa de Souza
é mestre em Direito do Estado pela UFPR, advogada em Paranavaí e professora da Faculdade Assis Gurgacz, em Cascavel – PR.