Ação Popular: reparação do dano ao ente público por ato de imoralidade administrativa

A presente abordagem limita-se a um singelo conteúdo que visa, sobretudo, recolocar em pauta a reflexão acerca do cabimento de indenização ao ente público vítima de lesão à moralidade administrativa, tendo como instrumento a ação popular.

A ação popular, como valioso instrumento de controle externo da administração pública, colocado a serviço da cidadania, tem seu contorno atual assentado no art. 5.º. LXXIII, na Constituição Federal de 1988, ?verbis?: ?Qualquer cidadão do povo é parte legítima para propor ação popular que vise anular ato lesivo ao patrimônio público ou entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e a patrimônio histórico e cultura, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência? (grifamos).

A pessoa jurídica de direito privado, vencida a resistência tradicional, ostenta já a prerrogativa de obter indenização por danos morais (Súmula n.º 227 do STF: ?A pessoa jurídica pode sofrer dano moral). No entanto, ressente-se de maior apreço a recomposição do dano moral sofrido pelo ente público. A conjuntura nacional, sempre pródiga em oferecer exemplos corrosivos à moralidade administrativa, mais do que nunca, no momento atual, exige urgente exercício de ?vontade jurídica? para alçar posição prospectiva e pedagógica.

Da exegese sistemática constitucional, fulcrada nos arts. 5.º. V , X e LXXIII e art. 37 e Súmula n.º 227 do STF, emerge o substrato jurídico apto a amparar o decreto de reparação por ato moralmente ofensivo ao ente público.

A ofensa à moralidade administrativa se traduz nas condutas de agentes públicos, terceiros conluiados e beneficiários, que praticam atos administrativos contaminados pela má-fé, astúcia, malícia, deslealdade, visando finalidades dissociadas do verdadeiro interesse público, ulcerando princípios e regras nucleares da administração pública. Não raro, fruto de nociva atuação dos malfeitores do erário público, o ente público sofre abalo na imagem e credibilidade, seu nome resulta estigmatizado, dificultando até mesmo o exercício da soberania que lhe é peculiar. ?Lato sensu? afeta, na mesma dimensão, as instituições públicas, desacreditando-as; violenta o próprio regime de direito; estimula desobediência civil; dissemina maior resistência ao pagamento de tributos pela descrença gerada; desestimula o acesso de pessoas probas à gestão política de administrações públicas.

Sabe-se que, em razão do estigma negativo, órgãos e empresas públicas são compelidas a mudar de denominação ou sigla. A própria sigla é motivo de chacota, associada aos atos de corrupção.O prejuízo moral é inquestionável e até em função dessa lesão, o próprio órgão passa a fazer campanhas promocionais para resgatar a credibilidade.

A despeito da arrojada inovação da Constituição de 1988, lamentavelmente raros são os casos em que o cidadão, legitimado a fiscalizar os atos lesivos da administração, postula a nulidade de ato lesivo à moralidade administrativa e respectiva reparação.

Prevalece, ainda, até mesmo dentre os operadores do direito (juízes, agentes do Ministério Público e advogados), certa resistência, sobretudo pela arraigada noção tradicional ínsita da Ação Popular, estribada nos pressupostos da ilegalidade e lesividade patrimonial.

O cabimento da Ação Popular tendo como fundamento autônomo lesão à moralidade administrava é matéria assente na doutrina e jurisprudência e, desmerece, portanto, maiores digressões, até porque decorre claramente do texto constitucional.

Ora, sabido é que, nos termos do art. 11 da LAP, ao julgar procedente a Ação Popular, deve o magistrado decretar a invalidade do ato e condenar os responsáveis pelas perdas e danos causados ao erário.

Não resta dúvida que a sentença na ação popular é de natureza (des)constitutiva e condenatória. Como bem observa MANCUSO(1), citando José Afonso da Silva, ?a só desconstituição do ato impugnado não bastaria para a satisfação da vera finalidade da ação popular, sendo necessário que, ao decreto de nulidade, se siga a condenação dirigida aos responsáveis?.

Tão-somente decretar a invalidade do ato de imoralidade administrativa e não impor o dever de indenização por danos morais, significa, de certa forma, esvaziar a extensão da LAP (Lei da Ação Popular), como forma de controle externo da administração pública, e consagrar a combatida impunidade do agente público (e terceiros) que, não obstante a reconhecida prática ilícita, sairiam ilesos, sem sofrer qualquer medida de caráter punitivo e compensatório no âmbito daquela ação.

Alentada tese nesse sentido defendida no 12.º. Congresso Nacional do Ministério Público (26 a 29 de maio de 1998) da lavra do ilustre Promotor de Justiça de São Paulo, Walter Foleto Santin, foi aprovada por unanimidade(2). Dentre as conclusões, sobreleva anotar que: 1) Os entes públicos e a sociedade podem ser vítimas de danos morais, por quebra do princípio constitucional da moralidade, previsto no art. 37 da CF/88; 2) o administrador público ou outras pessoas físicas ou jurídicas que praticarem ato caracterizador de imoralidade administrativa podem ser obrigados civilmente pela reparação dos danos; 3) a sanção por danos morais tem caráter compensatório e punitivo, servindo para compensar os danos sofridos pelo ente estatal e a sociedade, e de alerta e como forma de dissuadir a prática da imoralidade administrativa. Conclui, por outro lado, que a ação civil pública e a ação popular são os instrumentos jurídicos que podem albergar a pretensão de reparação pelos danos morais ao ente público.

Em fecunda monografia(3), a Procuradora da Universidade Estadual de Londrina, Marinete Violin, faz oportuna incursão sobre a reparabilidade de dano moral ao ente público, sustentando que:

?Também o Estado pode ser vítima de dano moral, no caso, por exemplo, de corrupção ativa, cujos efeitos negativos irradiam junto à opinião pública, nacional e internacional, resultando em descrédito do Estado.

O Brasil é carente de decisão nesse sentido, porém outros países não, como a Itália; o Estado italiano foi indenizado em conseqüência de um fato criminoso (corrupção), lesivo da dignidade, respeitabilidade e credibilidade do Estado.?

Ilustra a matéria trazendo o comentário acerca de caso ocorrido na Itália, em que o Tribunal de Roma reconheceu o dano não patrimonial por fato que se constituiu em delito lesivo à dignidade, respeitabilidade e credibilidade do Estado (Caso Lockheed)(4) Extrai-se o excerto:

?Il danno non patrimoniale è stato riconsciuto non solo alle persone fisiche, ma anche alle persone giuriche, ed in particolare allo Stato.In questo senso si è espresso il Tribunale di Roma, in conseguenza costituente reato(in matéria di tangenti), lesivo della dignità, rispettabilità dello Stato….? (grifo não contido no original).

A dificuldade reside na fixação do ?quantum? indenizatório. Tal como ocorre na recomposição dos danos morais à pessoa física, o magistrado, a seu prudente arbítrio, há de levar em consideração – e nesse sentido também sinaliza a tese referenciada – o ato praticado, os ganhos financeiros e políticos, os prejuízos morais e financeiros, as conseqüências negativas provocadas ao ente público e à comunidade, o grau de descrédito e desconfiança provocado no meio social, as condições econômicas do agente ofensor, o bom senso e a eqüidade.

Notas:

(1) Ação Popular, RT, 5.ª ed, 2003, p. 262.

(2) ?A INDENIZAÇÃO DOS DANOS MORAIS POR FERIMENTO AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA?, In Livro de Teses, Tomo 3, págs. 883/901.

(3) ?A PESSOA JURÍDICA: DIREITO À REPARAÇÃO DE DANO MORAL?, monografia apresentada no Curso de Especialização em Direito Empresarial da UEL, 2001, Anais da Biblioteca da UEL.

(4) ALPA, Guido: BESSONE, Mario: CARBONE, Vicenzo. Atipicità Dell? Ilecito/II-Diritti della Personalità e Danno Morale.Terza edizione. Milano: Dott A.Giuffe Editore, 1993,pág. 335.

Antônio Winkert Souza é procurador de Justiça no Paraná.

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