Academia e tirania: entre relâmpagos, vaidades e calmarias

As arcadas da academia jurídica guardam nos dias de hoje, em grande parte, nos seus prestigiosos capitéis neoclássicos e no seu madeiramento de lei pré-revolução industrial, infelizmente um movimento insosso de idéias e de personagens que está muito distante da sabedoria que se quisera em algum momento no Brasil imperial. A abertura principiante das faculdades de direito, que certamente esteve ligada no país à triste reprodução de um modelo europeu trazido por nossos intelectuais do final do séc. XIX, tinha como propósito a constituição deteriorada de uma elite que pudesse estar tecnicamente preparada para trabalhar nas indústrias que começavam a pulular, com auxílio das oligarquias, e, logo, do então Estado Federado brasileiro.

Todavia, esta imagem de nosso bacharelismo, que tanto intrigou Alberto Venâncio Filho, trouxe, mesmo nas suas angústias e exclusões que lhe constituíram a história, uma tentativa de conformar um conhecimento genuinamente brasileiro, e um esforço conjunto de criar na Academia um espaço de formação de saberes e, sobretudo, de sabedoria. Assim, mesmo aos tortos, os juristas brasileiros procuram construir nas faculdades de direito e nas instituições de ensino jurídico um espaço de leitura, de debates, de preparação, e de transformação cultural. Para tanto, uma série de aprimoramentos fizeram a história da Academia brasileira, como o aperfeiçoamento dos currículos (embora hoje alguns cursos jurídicos estejam regredindo, ao extinguirem as propedêuticas), a criação de cargos e concursos públicos fundados na lei e não mais nas cintas dos coronéis (ao menos formalmente), a inexistência de contratações pela amizade, mas por bancas de professores (ainda que por tantas, tantas e tantas vezes sejam ?bancas de exceção?, ad hoc, no melhor das vezes divulgadas trás das portas de acordo com os inscritos), o aparelhamento de setores administrativos e de departamentos, a criação de grupos de pesquisas, etc.

Entretanto, a academia jurídica tem se revelado nos últimos anos um verdadeiro lugar de batalha e de guerra de posições, muito distante da sabedoria grega que inspirou grande parte do estilo arquitetônico das faculdades brasileiras. Nem mesmo Gramsci imaginaria a perversidade que algumas personagens conseguiriam alcançar na construção de blocos hegemônicos, e nem mesmo grandes estrategistas históricos, descendentes dos Habsburgos, acreditariam na força das redes de favores e de influências que se constroem sob o manto de uma raison de culture, ou, raison d´état.

As academias jurídicas hoje, mais próximas da tirania à sabedoria, têm perdido seu propósito e seus mais belos objetivos, pois seus ?intelectuais?, à imagem de Richelieu, Napoleão, Bismarck ou Hitler, estão muito mais dispostos a transformar seu espaço de saber e de formação de subjetividades em verdadeiras trincheiras, em que a diplomacia cultural sucumbe à diplomacia das armas, das forças, das indicações, dos privilégios, da ?cordialidade? de Holanda, das exonerações e do silêncio!

Existem aqueles que, às claras, sustentam indigestas opiniões, mas há, sobretudo, aqueles que, lassos e degenerados, travam obscuras e veladas relações de poder sob as vestes dos discursos mais bonitos, emancipatórios e sociais que existem, mas extremamente antiéticos nas suas condutas, valorizando o velho princípio tanto anunciado por Machado de Assis do compadrio em detrimento do intelectual.

Os juristas de hoje estão a todo instante procurando criar dentro da academia, através de suas redes de influência, não um lugar de exercício do conhecimento, da pesquisa austera e profunda, mas, tal como Bismarck, um verdadeiro Lebensraum (espaço vital), no qual possam sobreviver.

O que se vê, entre penas e palavreados, entre grafias e má retórica, são verdadeiras ?punhaladas nas costas?, dessas que tanto temiam os alemães no mito da Dolchstoss, explorado pelos combatentes inimigos. Em busca de uma Deutschland Erwash (Alemanha desperta), os alemães da Segunda Guerra, herdeiros da ordem bismarckiana, procuram submeter ingleses e franceses aos delírios de seu orgulho ferido desde Versalhes, e propalaram uma série de batalhas para construir uma Mitteleuropa, uma Europa central de conteúdo germânico e prussiano.

Nossos acadêmicos de hoje certamente assustariam Clausewitz e Schlieffen, por sua imensa capacidade técnica e estratégica ao empreenderem sua Kulturkampf (luta cultural), para disseminar seus valores, seu poder, seus delírios. Os juristas da academia estão sempre à procura de transformar seus espaços e seus departamentos numa espécie de Gleichschautung, de um estado coordenado sob a autoridade total de um só líder, burlando resoluções universitárias e fustigando a moralidade pública. Seus reais propósitos, tramados em seus Bunkers, seus sistemas fortificados no subsolo de seus falsos gabinetes, parecem travar pequenas e rápidas batalhas na busca por alianças e espaços de influência.

Longe da diplomacia do appeasement (apaziguamento) inglês, os juristas acadêmicos vivem, na sua grande maioria, embora certamente alguns dignos devem ser excluídos, lutando por poder e pelo reforço de sua tirania, muito longe do conhecimento e da pesquisa, muito longe dos saberes e, sobretudo, da comunidade. Projetos de extensão jurídica, que trazem mais gasto de tempo, e menos dinheiro e menos fama, são cada vez mais exíguos nas academias, porque o que lá impera são os mêlées franceses (os combates desordenados), e o medo de não se alcançar nada, nenhuma autoridade, nenhum brilho, e ter de ficar, como bem diziam os descendentes de Pétain, uns gueles cassées, uns cara machucadas, que só têm moral e mais nada.

É, portanto, na luta por submissões e por anexações, por exclusões e frivolidades, por falsidades e por irresponsabilidades, que invejariam a Anchluss e a Realpolitik operada pelos nazistas, que os juristas brasileiros parecem construir suas vidas acadêmicas. Há, talvez, duas únicas diferenças: por um lado, mais mortes cívicas e menos físicas; e, por outro, uma imensa distância entre discurso acadêmico e prática forense, o que jamais os totalitaristas fizeram, já que a sua prática agressiva, antiética e inconseqüente condizia nos exatos e tristes termos com as palavras proferidas na cátedra.

Entretanto, é preciso fugir a tudo isso, para que alguns intelectuais de respeito não sejam corrompidos ou engolidos pelo golpe tirânico, a Endlösung (solução final) germânica, que vitimou tantos judeus, tantos inocentes. É preciso fugir a tudo isso, e lutar contra esse modelo de academia, nem que se tenha que agüentar a Gotterämmrung, a maldição dos deuses que vitimou os alemães por não terem merecido o Führer. Quantos são os juristas honestos de hoje em dia que, tal os combatentes americanos, mesmo vitoriosos (na conduta ética e na batalha), não temem como eles temeram o grito do comandante: ?Go over on the top?, para sair da trincheira e enfrentar com coragem a morte quase certa do fogo cruzado. É preciso fugir a tudo isso e reconstruir a academia jurídica, que ainda hoje refuta temáticas, num dogmatismo bélico estratégico, que ainda hoje tem tantos preconceitos, ?tanta religião posta? (às vezes literalmente), tanto despautério, tanto desconchavo!

Porque então, quem sabe um dia, a tirania deixe de ser uma realidade da academia jurídica brasileira e retome o seu verdadeiro sentido grego de culto à experiência reflexiva, e, sobretudo, à sabedoria. Todavia, só espero que isto não demore muito, pois talvez um dia seja tarde, e seus intelectuais tenham que infrutiferamente dizer, tal como afirmou o queixume de Guilherme II, depois que a Grande Guerra acabou, vendo os destroços humanos que seu ato de declaração de guerra à Rússia naquele primeiro de agosto causara: Das habe ich nicht gewollt (Eu não queria isso!). Só espero que seus intelectuais não queiram realmente isso!!

Guilherme Roman Borges é advogado, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP, mestre em Sociologia do Direito na UFPR e professor de Economia e Direito Econômico no Unicenp.

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