Aborto de Anencéfalos

Sabe-se que a pós-modernidade (segunda metade do século XX) tem sido marcada por uma sucessão de crises, como as econômica, política, educacional e social, sendo a mais grave de todas, a ética. Os paradigmas estão em esgotamento, não contendo mais respostas aos problemas humanos. Os modelos tradicionais de família, religião, ciência, política, etc. não mais correspondem à atual realidade globalizada, porque o mundo está vivendo uma época de grandes reviravoltas, de busca de novos rumos.

Diante deste quadro, os modelos jurídicos, quer teóricos ou práticos, não têm alcançado os resultados almejados. As penitenciárias estão superlotadas, o Poder Judiciário abarrotado de processos, os juizes atarefados, os bancos escolares superlotados, os recursos naturais e econômicos escassos e assim por diante. A crise dos modelos jurídicos reflete uma crise mais geral, qual seja, a crise do homem e da sociedade.

Os paradigmas jurídicos, representados por suas normas, têm se mostrado insuficientes para solucionar questões emergentes, sobretudo diante dos avanços científicos e tecnológicos. Novas situações exigem novas soluções, como por exemplo, a clonagem humana, os transplantes, o direito de morrer e a prática da eutanásia, o aborto de anencéfalos, a experimentação em seres humanos, a esterilização, a transexualidade, a preservação do segredo médico e o interesse público, o uso dos transgênicos, a biopirataria e o patenteamento de novas substâncias farmacológicas, a reprodução assistida e o direito dos embriões, etc.

Assim, nos dias atuais, os grandes debates impõem o estabelecimento de limites aos avanços das ciências biolomédicas e da biotecnologia, envolvendo questionamentos invasivos da privacidade, mediante a utilização da telecirurgia, identificação do DNA, sem consentimento do indivíduo, através de fluídos corporais, tais como saliva, sangue, etc.

Diante deste quadro, ultimamente, reacendeu-se o debate em torno dos anencéfalos, questionando-se o direito dos pais, sobretudo da futura mãe, de decidirem pelo abortamento do feto, cujas possibilidades de prosseguir vivendo (viabilidade) são nulas; já que sem o cérebro (acrania) falecerá em poucos minutos após o nascimento.

No entanto, organizações religiosas, fundadas em diversos princípios, defendem o direito do feto anencefálico de ser gestado até o fim da gravidez, mesmo sabendo de sua inviabilidade, em evidente menosprezo pelo sofrimento físico e psicológico da mãe. Neste sentido, louve-se a lucidez da decisão do Ministro Marco Aurélio Mello, do STF, em ação ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS), recentemente, reconhecendo o direito da mãe interromper a gravidez diante da deformação irreversível do feto.

É importante lembrar que os seguidores das diversas confissões de fé e os agnósticos têm o direito constitucional à inviolabilidade de sua liberdade de consciência e de crença (art. 5º,VI), não havendo uma religião oficial que imponha seus dogmas a todos os cidadãos, de modo que a intromissão de lideranças religiosas em questões de foro íntimo representa evidente invasão e desrespeito às consciências individuais e à Constituição Federal.

Maria da Glória Colucci

é mestre em Direito Público, professora da Faculdade de Direito da UFPR e Faculdade de Direito de Curitiba, orientadora do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Biodireito e Bioética das Faculdades Curitiba.

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