O tipo penal nos crimes dolosos (de acordo com a teoria constitucionalista do delito que adotamos) é a soma da tipicidade formal (ou objetiva) + tipicidade material (ou normativa) + tipicidade subjetiva. Da tipicidade material fazem parte três juízos valorativos distintos: juízo de desaprovação da conduta, juízo de desaprovação do resultado jurídico e juízo de imputação objetiva do resultado. O resultado jurídico (lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico) para ser desvalioso (desaprovado) precisa reunir quatro características: (a) concreto; (b) transcendental; (c) grave (não insignificante) e (d) intolerável.

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A quarta exigência que advém do resultado jurídico desvalioso é a intolerabilidade da ofensa. A ofensa, portanto, além de real, transcendental e grave, deve ser também intolerável (desarrazoada). Seja por força da exigência de que relevante somente pode ser a ofensa intolerável (princípio da fragmentariedade do Direito penal), seja em razão da teoria da adequação social, o fato é atípico quando não perturba (ou não perturba seriamente ou não perturba desarrazoadamente) o convívio social justamente porque a ofensa ou é tolerada (aceita) pela (quase) unanimidade da comunidade ou não é desarrazoada.

Do exposto cabe concluir que não há resultado jurídico desvalioso quando o resultado não é desarrazoado (ou arbitrário ou injusto). Esse é o fundamento jurídico para não se reconhecer crime (fato típico) na conduta de quem pratica o chamado aborto anencefálico, que gera uma morte, porém, não desarrazoada ou arbitrária.

Pela relevância do tema, que se encontra sub judice no STF (ADPF 54), vale ponderar o seguinte:

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1. ?Status quaestione?: ação proposta, liminar e cassação da liminar pelo STF

Nos termos dos artigos 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, todo atentado abortivo contra o feto é crime. Apenas em duas situações é permitido o abortamento no nosso país: quando há risco para a gestante (CP, art. 128, I: aborto necessário) ou quando a gravidez resulta de estupro (CP, art. 128, II: aborto humanitário ou sentimental). Como se vê, o aborto anencefálico (aborto de feto com crânio mal formado ou no caso de hidroanencefalia) não está expressamente autorizado. Pela letra fria da lei, constitui (constituiria) delito. De cada 10.000 nascimentos no Brasil, oito são anencefálicos. Muitas gestantes e sua família, assim como alguns médicos, mesmo correndo risco de serem processados, praticam o aborto anencefálico. Literalmente há crime.Vive-se uma situação de insegurança jurídica muito aflitiva. A exceção somente acontece quando o Judiciário, em cada caso concreto, concede autorização para o ato do abortamento.

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Para tentar buscar uma solução para essa complicada questão, no princípio de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS -, por intermédio do advogado Luiz Roberto Barroso, com fundamento na CF (art. 102, § 1.º) bem como na Lei 9.882/99, ingressou no STF com uma ?ação de descumprimento de preceito fundamental? (ADPF 54 QO/DF), visando a obter da Corte Suprema uma interpretação conforme à Constituição de vários dispositivos legais do Código Penal, justamente os que cuidam do delito de aborto (CP, arts. 124, 125, 126 e 128).

Convém enfatizar desde logo que não se pretende, por meio da referida ação, que o STF crie uma nova norma jurídica para autorizar o aborto anencefálico (isto é, aborto do feto com má formação craniana). Criar norma jurídica o Judiciário não pode. Por força da tradicional teoria da tripartição dos poderes (Montesquieu), a tarefa de legislar é do legislador. A questão, entretanto, posta na citada ADPF, é outra: é saber se o aborto anencefálico acha-se ou não inserido no âmbito da proibição legal (isto é: esse tipo aborto está ou não enquadrado na norma proibitiva derivada dos arts. 124, 125 e 126 do CP?). Não se pede ao STF para ?legislar?, sim, para decidir (conforme as normas e princípios constitucionais) se o aborto anencefálico é ou não um fato típico, ou seja, um fato adequado ao tipo penal do aborto. É uma questão de tipicidade penal, não de ?ativismo judicial?.

O Ministro Marco Aurélio, na mencionada ADPF, em julho de 2004, deferiu liminar que passou a amparar, com eficácia erga omnes, todos os casos de aborto anencefálico no nosso país. Em outubro do mesmo ano o Pleno do STF (por sete votos contra quatro) cassou a liminar, sob o argumento (principal) de que era satisfativa (leia-se: uma vez feito o aborto, caso o mérito da ação não fosse julgado procedente, a situação seria irreversível; a vida, quando eliminada, não tem retorno).

Na ocasião em que o STF cassou a liminar duas questões ficaram pendentes: (a) a via da ação de descumprimento de preceito fundamental é adequada para se discutir o tema proposto? (b) no mérito, qual é a posição definitiva dos Eminentes Ministros da Corte Suprema sobre o aborto anencefálico?

2. Pertinência jurídica da ADPF

A argüente (CNTS) apontou como violados, em sua ação de descumprimento de preceito fundamental (que nada mais é que uma nova modalidade de controle de constitucionalidade, que recai sobre o chamado direito pré-constitucional), os preceitos dos artigos 1.º, IV (dignidade da pessoa humana); 5.º, II (princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade); 6.º, caput, e 196 (direito à saúde), todos da CF. Como ato do Poder Público, causador da lesão, o conjunto normativo ostentado pelos artigos 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal.

Como se percebe, de um lado está o interesse público na proteção do bem jurídico vida (do feto); de outro está o interesse individual e geral de liberdade, que, em última instância, se sintetiza na dignidade da pessoa humana. Qual deve preponderar? Qual tem maior valor? Algum desses interesses seria absoluto?

Pediu-se, na inicial, em última análise, a interpretação conforme à Constituição dos referidos dispositivos do CP, a fim de explicitar que os mesmos não se aplicam aos casos de aborto de feto anencéfalico. Pretende-se a declaração do STF no sentido de que o aborto anencefálico não se enquadra no âmbito da proibição penal. Que não é um fato (materialmente) típico.

Em 27.04.2005 o Pleno do STF, por sete votos a quatro, concluiu pela admissibilidade (e adequação) da ação de descumprimento de preceito fundamental. Resta agora o exame do mérito da questão.

Múltiplas foram as razões invocadas para o positivo juízo de admissibilidade da ADPF: (a) que a questão do aborto anencefálico é muito relevante; (b) que no atual estágio há muita insegurança nessa área; (c) que são muito relevantes os direitos e interesses envolvidos (vida do feto, liberdade da gestante, dignidade etc.); (d) que há muitas decisões discrepantes sobre a matéria; (e) que não há outro meio jurídico mais idôneo para se discutir o tema; (f) que é incabível qualquer outra ação constitucional de controle de constitucionalidade por se tratar de direito pré-constitucional etc.

Vários Ministros do STF já deram evidências, em julgamentos ou entrevistas, de que votarão a favor do direito da mulher de optar por interromper a gravidez se for detectada a anencefalia.

Por ocasião da concessão da liminar (julho de 2004) o Ministro Marco Aurélio de Mello, relator da ação, autorizou a antecipação do parto nesses casos em todo o país. Sublinhou-se que não se trata de aborto porque não há chance de sobrevivência do feto fora do útero.

Os quatro votos pelo arquivamento da ação (ADPF) foram de Eros Grau, Cezar Peluso, Ellen Gracie Northfleet e Carlos Velloso. Eles disseram que o STF substituirá o Congresso na tarefa de legislar porque estará criando uma hipótese de aborto não prevista no Código Penal. Mas, com a devida venia, não é disso que se trata.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito penal pela USP, secretário-Geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente da Rede LFG – Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina) – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais ? www.lfg.com.br