O critério do risco permitido que ocupa posição de destaque no âmbito das modernas teorias da imputação objetiva – foi concebido como uma manifestação concreta da adequação social (conceito amplo), compreendendo menoscabos a determinados bens jurídicos imprevisíveis ex ante e não inerentes à realização de uma atividade. O traço comum entre a adequação social e o risco permitido consiste na ausência de um resultado penalmente típico, o que é explicado por uma interpretação teleológico-restritiva no caso da adequação social ou pela inexistência de dolo ou de culpa, nas hipóteses de risco permitido.
A adequação social e o risco permitido têm como pressuposto fundamental a existência de uma lesão ao bem jurídico que não chega a constituir um desvalor do resultado(1). Não há, portanto, um resultado típico.
Não obstante, enquanto na adequação social a exclusão da lesão produzida do âmbito do resultado penalmente típico ocorre em virtude de uma interpretação teleológica restritiva do tipo(2), com lastro no exame das considerações ético-sociais, jurídicas e políticas dominantes, nas hipóteses de risco permitido isso se explica pela falta de desvalor da ação, o que repercute sobre o desvalor do resultado. E, frise-se, não há desvalor do resultado sem desvalor da ação(3).
É precisamente no âmbito do risco permitido onde se situam determinadas hipóteses caracterizadas pela presença exclusiva de um desvalor de situação ou de estado, que opera como excludente do desvalor da ação. São casos em que a ausência de lesão típica ao bem jurídico é conseqüência direta da falta de finalidade jurídico-penalmente relevante. A inexistência de desvalor da ação conduz, portanto, à constatação de um mero desvalor de situação, não equiparável ao desvalor do resultado exigido para a constituição do tipo de injusto.
Essa assertiva recobra sentido na análise das hipóteses de anencefalia.
O deslinde da repercussão dessa matéria no âmbito da configuração delitiva tem suscitado profundas divergências doutrinárias.
Faz-se necessário esclarecer que aqui há ausência de dolo ou de culpa (desvalor da ação), o que dá lugar a inexistência do desvalor do resultado, posto que inviável uma afetação do bem jurídico capaz de subsumir-se formalmente no resultado típico.
Com o emprego de um critério hermenêutico intra-sistemático, conclui-se que a ação concretamente realizada pelo sujeito não apresenta ?uma finalidade jurídico-penalmente relevante porque o resultado que se pretende alcançar não se reveste da manifestação concreta de lesão ao bem jurídico integrante do resultado típico, com os elementos que determinam a gravidade jurídico-penal da lesão do bem jurídico nesses delitos?.(4)
Na hipótese de anencefalia, o embrião ou o feto apresentam um processo patológico de caráter embriológico que se manifesta pela falta de estruturas cerebrais (hemisférios cerebrais e córtex), o que impede o desenvolvimento das funções superiores do sistema nervoso central(5). O feto anencéfalo, embora dificilmente possa alcançar as etapas mais avançadas da vida intra-uterina, visto que o funcionamento primitivo de seu sistema nervoso obstaculiza a existência de consciência e de qualquer tipo de interação com o mundo que o circunda, conserva as funções vegetativas – responsáveis pelo controle parcial da respiração, das funções vasomotoras e das dependentes da medula espinhal -, não se ajustando seu estado, em termos neurofisiológicos, às hipóteses de morte cerebral. Portanto, não é de aplicação do critério da morte cerebral (whole brain criterion) ao feto anencéfalo, que não tem cérebro.
Nos casos de anencefalia, o critério mais adequado – da morte neocortical (high brain criterion) – confere ênfase aos aspectos relacionados à existência da consciência, afetividade e comunicação, em detrimento do aspecto biológico da vida. Em situações como essa, o feto não pode ser considerado como ?tecnicamente vivo?, o que significa que não existe vida humana intra-uterina a ser tutelada.
De fato, conforme bem se assevera, mesmo que outros ramos do ordenamento jurídico acentuem o aspecto exclusivamente naturalístico da vida humana, o certo é que o Direito Penal ?deve partir da idéia de que esse bem jurídico há de ser determinado a partir de critérios normativos, e não pode prescindir das concepções sociais. Uma concepção estritamente normativa da vida, porém, careceria de toda limitação se prescindisse de toda a realidade naturalística?, que deve constituir ?um limite para a valoração?.(6)
A interrupção da gravidez ou a antecipação do parto em casos de anencefalia não tipifica, assim, o delito de aborto, visto que se constata unicamente a presença de um desvalor de situação ou de estado que ingressa no âmbito do risco permitido, atuando como excludente do desvalor da ação. Isso não se confunde com os casos de adequação social, uma vez que a finalidade dessas ações não se dirige ao cumprimento de uma função positivamente valorada do ponto de vista social. Também não há que se falar da existência de uma causa de justificação.(7)
Em realidade, verifica-se apenas um desvalor de situação que não se assimila à lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado (desvalor do resultado), pois o anencéfalo não é biologicamente capaz de concretizar-se em uma vida humana viável, o que só permite caracterizá-lo como ?um projeto embriológico falido, não sendo um processo de vida, mas um processo de morte?.(8)
A aplicação do critério do risco permitido não parte, assim, do reconhecimento da existência de vida intra-uterina nas hipóteses de anencefalia(9). Ao contrário, é justamente a inexistência de vida o que permite fundamentar a falta de dolo ou culpa, bem como a conseqüente falta de um resultado típico.
Trata-se, portanto, de fato atípico, visto que falto o desvalor da ação, considerada essa postura dogmática preferível a qualquer outra.
Notas
(1) Cf. WELZEL, H. Estudios sobre el sistema de Derecho penal, p.52 s., especialmente p.68 s.
(2) Vide CEREZO MIR, J. Curso de Derecho penal español, PG, t.II, p.; HIRSCH, H. J. Soziale Adäquanz und Unrechtslehre. ZStW, 1962, t.74, fasc.1, p.87 s., especialmente p.133 s.
(3) Vide WELZEL, H. O novo sistema jurídico penal, p.31: ?não existem, portanto, ações finais em si, ou ?em absoluto?, mas apenas em relação às conseqüências compreendidas pela vontade de realização?.
(4) RUEDA MARTÍN, M.ª A., op.cit., p273.
(5) Cf. SILVA FRANCO, A. Anencefalia: breves considerações médicas, bioéticas, jurídicas e jurídico-penais. Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, 2005, v.833, p.401 s. (Idem, Um bom começo. Boletim IBCCrim, out./2004, n.º 143, p.2).
(6) GRACIA MARTÍN, Luis. In: DÍEZ RIPOLLÉS/GRACIA MARTÍN. Delitos contra bienes jurídicos fundamentales: vida humana independiente y libertad. Valencia: Tirant lo Blanch, 1993, p.22 e 23. Na doutrina nacional, perfilha semelhante orientação CARVALHO, Gisele Mendes de. Aspectos jurídico-penais da eutanásia. São Paulo: IBCCrim, 2001, p.101-102.
(7) Assim, BUSATO, Paulo César. Tipicidade material, aborto e anencefalia. Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, 2005, v.836, p.396-397.
(8) SILVA FRANCO, A., op.cit., p.419. Nesse sentido, vide também PRADO, Antonio. Sobre a interrupção da gestação de fetos anencefálicos. Boletim IBCCrim, dez./2004, n.º 145, p.2; COSTA, Domingos Barroso da. Sobre a atipicidade da interrupção da gestação de feto anencéfalo. Boletim IBCCrim, julho/2005, n.º 152, p.13, especialmente nota 5.
(9) Como parece sustentar, por exemplo, GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico e imputação objetiva: exclusão da tipicidade (I). O Estado do Paraná, Curitiba, 12 de junho de 2005, n.º 636, p.1 [Idem, Aborto anencefálico e imputação objetiva: exclusão da tipicidade (II). O Estado do Paraná, Curitiba, 19 de junho de 2005, n.º 637, p.1], ao afirmar que ?no aborto anencefálico parece não haver dúvida de que o risco criado (para o bem jurídico vida do feto) não é desaprovado juridicamente?. Não obstante, contraditoriamente, conclui o autor pela atipicidade do aborto de feto anencéfalo em razão da ausência de desvalor do resultado, afirmando que a morte, in casu, não seria ?arbitrária? e sua antecipação se justificaria ?para a tutela de outros interesses sumamente relevantes (saúde da mãe, sobretudo psicológica, dignidade etc.)?. Quando se assume como ponto de partida, como faz o mencionado autor, a existência de vida intra-uterina, parece forçoso concluir pela presença do desvalor do resultado (lesão ao bem jurídico vida tutelado pelo preceito). O risco permitido só poderia funcionar, portanto, como causa de justificação, e não como excludente de tipicidade. Demais disso, a eventual ponderação de bens só teria lugar no âmbito das causas de justificação, e não na tipicidade.
Luiz Regis Prado é professor titular de Direito Penal na Universidade Estadual de Maringá.
Érika Mendes de Carvalho é professora adjunta de Direito Penal na Universidade Estadual de Maringá.