O último 13 de Maio, data da abolição da escravatura no Brasil, não foi lembrado com as festas dos anos anteriores porque coincidiu com a visita do papa Bento XVI. A população e os meios de comunicação estavam voltados para a visita do pontífice, acontecimento que se sobrepôs à abolição, que no Brasil se deu tardiamente e até hoje não se consolidou, pois permanecem as injustiças sociais e delas os negros têm sido as maiores vítimas. No mais, a escravatura é mais um fato ignominioso que nos envergonha do que a data da abolição uma festa por uma conquista obtida ou uma injustiça corrigida. Mas coube ao arcebispo de Aparecida, dom Raymundo Damasceno Assis, ao saudar o papa Bento XVI, relembrar a abolição ao lançar um apelo pela igualdade racial, relacionando a luta dos negros com a devoção a Nossa Senhora Aparecida.
Dom Raymundo relembrou a data como ?o início simbólico do processo de construção de uma sociedade em que a dignidade da pessoa humana se deve fazer respeitada e garantida por lei?. A cor negra da imagem de Nossa Senhora retirada das águas do Rio Parnaíba, enegrecida pelo tempo e pelas condições em que se encontrava, foi o gancho feliz para a abordagem do tema. Disse o arcebispo que a cor da imagem ?não é, por certo, desprovida de significado. A devoção à Virgem Aparecida constitui, assim, importante fator de integração das divergentes etnias no Brasil?.
Usou de uma coincidência feliz para relembrar uma data que tem sido comemorada pela comunidade negra e, menos significativamente, pela branca ou de outros matizes. Mas tem sido encarada como uma conquista, quando nos parece que deveria ser ressaltado o fato de que marca uma vergonha. Vergonha que viveram outros países ocidentais, mas que o nosso foi o último a oficialmente dela se descartar. O ato de abolição da princesa Isabel de qualquer forma foi um avanço. Mas um avanço no rumo do arrependimento e não do perdão à ignomínia da qual o nosso país e tantos, na mesma época, eram culpados. Recentemente, deram maior densidade ao ato da filha de dom Pedro II, ao descobrirem que ela há muito vinha desejando a abolição e que a lei libertadora que assinou não foi um ato político ocasional, mas uma decisão pensada e pesada, pois lhe valeria não poucos inimigos entre os senhores de escravos. E mudanças substanciais na nossa economia, por alterar de uma hora para outra as fontes de mão-de-obra. Abriram-se as portas para a imigração, sem abri-las para o trabalho remunerado dos ex-escravos, lançados à liberdade sem instrução, sem terras, sem capital e ainda sofrendo humilhante preconceito.
Tal situação ainda perdura em um nível insuportável, embora já se vejam alguns descendentes de escravos ganhando, a duras penas, posições de mais relevância nos nossos meios econômicos, políticos e sociais. Mas não podemos nos esquecer que a escravidão no trabalho ainda perdura e freqüentemente é denunciada às autoridades. Isso para não falar nas relações de trabalho que se assemelham à escravatura quando não dão aos trabalhadores as garantias legais e os benefícios sociais que são outorgados por nossa legislação aos signatários de contratos formais de trabalho.
A intervenção do arcebispo metropolitano de Aparecida, dom Raymundo Damasceno Assis, foi referência a uma luta que não conflita nem com o papel evangelizador conservador ditado pelo papa nem com anseios dos católicos mais progressistas. Uma luta em que católicos conservadores e progressistas podem e devem desenvolver lado a lado e com o mesmo fervor.