Não há nada de bom neste mundo que, pelo abuso, não possa tornar-se algo de mau. Isso bem se aplica às certidões negativas de débitos tributários. Em princípio, a exigência desses documentos, para participar de licitações, obter crédito (de instituições financeiras públicas), e, mais recentemente, receber pagamentos é salutar, protegendo não só o interesse público, mas também o das empresas que mantêm em dia o cumprimento de suas obrigações tributárias e que são amiúde prejudicadas pelas que reduzem seus custos e, logo, seus preços, deixando de recolher tributos. Por sinal, a fim de se evitar responsabilidades tributárias, mesmo os contratantes particulares têm, ultimamente, passado a exigir a apresentação de certidões, como requisito para liberação de pagamentos. Porém, notórias deficiências do fisco no gerenciamento desse mecanismo acabaram por transformá-lo em algo odioso, em uma fonte adicional de custos e dificuldades mesmo para empresas que observam seus deveres perante o fisco. Por sinal, a esse respeito, foi divulgado um estudo da auditoria PricewaterhouseCoopers dando uma dimensão aproximada do problema: 92,7% das empresas alcançadas pela pesquisa enfrentam ou enfrentaram dificuldades para obter certidões negativas; pior, muitas perderam oportunidades de negócios, em razão de pendências mínimas (abaixo inclusive do piso de recolhimento de tributos por meio de DARF).
A desorganização do fisco tem-se revelado, por exemplo, na cobrança de débitos já saldados, na tardança em eliminar pendências já resolvidas (para depois, absurdamente, reintroduzi-las no sistema) e no péssimo atendimento que os servidores prestam às empresas. Essas negligências, esse descaso com o contribuinte, chegaram a tal ponto que foi necessário introduzir regra estabelecendo um prazo de trinta dias para a Receita Federal examinar pedidos de revisão apresentados por contribuintes, nos quais se faça prova do pagamento, após o qual, mesmo que não haja resposta, a certidão deverá ser outorgada. Esse prazo, todavia, também é longo demais e muitas empresas que não podem aguardar seu transcurso são obrigadas a ingressar com ações judiciais em busca de uma liminar que lhes garanta a certidão.
Cada vez que não é possível obter certidão pela internet, resta dirigir-se às filas intermináveis das repartições fazendáridas, ainda de madrugada, obter uma senha e aguardar por horas que Sua Majestade, o servidor (de quem? de si próprio), digne-se atender o suplicante, o que, usualmente, é feito com o máximo de má vontade e truculência. A cada ?visita?, uma pequena dificuldade é levantada. Saneada esta, nova visita, nova dificuldade. E assim por semanas, às vezes por meses. A fim de se evitar esse vai-e-vem enlouquecedor, há quem sugira (no referido estudo, por exemplo) que a primeira solicitação do contribuinte opere como um ponto de corte, isto é, resolvido o problema apurado inicialmente, a certidão deveria ser, sem mais, outorgada, devendo novas pendências ser consideradas apenas quando, vencida esta, for solicitada outra.
Por outro lado, as greves endêmicas e intermináveis dos servidores do fisco (que abusam de um direito fundamental, sem sofrer qualquer tipo de sanção, e transformam o cidadão numa espécie de refém, diga-se de passagem) são outro obstáculo a ser enfrentado pelas empresas, às quais resta ajuizar ações judiciais que, em condições normais, poderiam ser dispensadas. E não seria difícil resolver-se pelo menos essa dificuldade: bastaria o fisco prorrogar automaticamente a vigência das certidões, enquanto o estado de greve perdurasse. É o que fez o INSS em 2005, diante das greves contínuas de seus servidores. Porém, a administração da Receita Federal, pouco preocupada com os danos causados aos contribuintes, nada fez até agora nesse sentido.
Há, ainda, uma ?esperteza? que vem sendo utilizada pelo fisco, que consiste em retardar a execução do crédito fiscal apurado. E por quê? Porque, ajuizada a execução fiscal e devidamente garantido o crédito exeqüendo, o contribuinte volta a ter direito a obter certidões com efeitos equivalentes aos de negativas (consoante dispõe o art. 206 do CTN), podendo então, por meio de embargos, questionar a exigibilidade do crédito. Mas a inação do fisco, às vezes intencional, mantém o crédito sem garantia e, logo, sem possibilitar a outorga de certidão ao contribuinte. Nesses casos, resta antecipar, por diversas ações, a garantia em Juízo, o que tem sido, regra geral, aceito pelo Judiciário.
Conseqüência dos abusos aludidos é a multiplicação de demandas judiciais, que poderia ser evitada por uma gestão mais competente e séria do problema. De fato, hoje, grande parte das ações tributárias está ligada, direta ou indiretamente, à recusa de certidões.
Enfim, as certidões são uma boa arma de defesa do fisco e da sociedade contra o mau pagador, mas uma arma em mãos inábeis.
Leonardo Sperb de Paola é doutor em Direito, professor da FAE Business School e advogado.