Determina a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que os partidos políticos devem possuir caráter nacional (art. 17, I). Importa ressaltar que o legislador constituinte não remeteu a regulamentação desse dispositivo para a legislação ordinária. Portanto, não caberia fazê-lo ao legislador ordinário.
Na verdade, com a imposição do princípio do caráter nacional buscou-se, fundamentalmente, impedir a formação de partidos com simples programas regionais ou locais, como eram, por exemplo, as organizações políticas da primeira República brasileira. Com efeito, aqueles partidos republicanos regionais identificavam-se mais com facções do que propriamente com o espírito de verdadeiros partidos políticos.
Fato que chama atenção pode ser encontrado na redação do art. 46, § 4.º da Lei dos Partidos Políticos (Lei n.º 9.096/95), quando fala em âmbito nacional ou estadual. O legislador ordinário utilizou corretamente o vocábulo âmbito, já que se trata do campo de ação, e, não da forma de ser do Partido, logo, não se trata de caráter. O Dicionário do Aurélio apresenta uma distinção marcante entre os significados dos vocábulos caráter e âmbito. A palavra caráter estaria associada ao conjunto de traços particulares, o modo de ser de um grupo, enquanto o termo âmbito seria mais apropriado para designar campo de ação, zona de atividade.
Desta forma, o sentido do caráter nacional do Partido vincula-se à exigência de um programa político-partidário que contenha propostas voltadas para o conjunto do território brasileiro e não tanto à obrigatoriedade de se construir uma estrutura partidária que contenha ramificações organizacionais em algumas unidades da Federação. Em síntese, o espírito do caráter nacional impõe que os partidos tenham compromissos voltados, acima de tudo, para a construção de projetos políticos que envolvam o conjunto do país, e não de pequenos grupos ou facções locais.
No entanto, por mais que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 tenha-se omitido no estabelecimento de parâmetros que caracterizem o sentido da expressão caráter nacional dos partidos, o certo é que também a legislação ordinária não dispõe de delegação constitucional para regulamentar tal dispositivo. A plena liberdade de criação dos partidos políticos, por exemplo, é igualmente uma garantia constitucional, entretanto esse não foi o entendimento do Congresso Nacional quando aprovou a Lei dos Partidos Políticos.
Fato é que diante do impasse de interpretação constitucional, o legislador ordinário e o Tribunal Superior Eleitoral acabaram avocando para si e, naturalmente, para suas próprias conveniências políticas, o direito de estabelecer seu entendimento sobre o sentido de caráter nacional do partido. Assim, substituindo o significado do termo caráter pelo do vocábulo âmbito, a configuração do caráter nacional foi restritivamente definida pela comprovação do apoiamento de determinado número de eleitores, distribuídos por determinado número de Estados.
Conforme estabelece o art. 7.º da Lei dos Partidos Políticos, após adquirir a personalidade jurídica na forma da lei civil, as instituições partidárias deverão registrar seus estatutos no TSE. Porém, de acordo com § 1.º do mesmo artigo, o registro do estatuto naquele tribunal só será admitido daquele partido político que tenha caráter nacional, considerando-se como tal aquele que comprove o apoiamento de eleitores correspondente a pelo menos, meio por cento dos votos dados na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, não computados os votos brancos e os nulos, distribuídos por um terço, ou mais, dos Estados, com um mínimo de um décimo por cento do eleitorado que haja votado em cada um deles.
Ou seja, na prática, se um determinado movimento social pretender organizar-se em partido para atuar na esfera da representação política do Estado, primeiro deverá demonstrar seu caráter nacional, ou melhor, âmbito nacional, para só depois adquirir o privilégio da ação política. Naturalmente que, neste caso específico, o legislador ordinário acabou impondo, mesmo que em grau menor do que para o funcionamento parlamentar, uma nova cláusula de barreira, neste caso voltada para o simples registro do estatuto do partido.
Entretanto, a maior dúvida que fica é se o Tribunal Superior Eleitoral possui competência para negar o registro do estatuto de partido que não cumprir quantitativamente o apoio de eleitores do seu caráter nacional, já que o § 2.º do art. 17 da Constituição é claro ao determinar que os partidos políticos, após adquir personalidade jurídica, na forma da lei civil, registrarão seus estatutos no Tribunal Superior Eleitoral. Como visto, a Constituição não estabelece em nenhum momento que o registro do estatuto do partido deverá cumprir qualquer tipo de procedimento ou requisito, remetendo para o jargão usual: de acordo com a lei.
Assim, não bastasse a interpretação equivocada do termo caráter nacional pelo legislador ordinário, aliás, princípio que, como visto, não necessitava qualquer tipo de regulamentação por se tratar de compromisso programático que cada partido deveria assumir, pode-se concluir que a redação do art. 7.º, §1.º da Lei dos Partidos Políticos fere profundamente o princípio constitucional previsto no caput do art. 17 da Constituição que garante a plena liberdade de criação de partidos. Da mesma forma, fere profundamente a Constituição a decisão do TSE em determinar a verticalização das coligações partidárias estaduais às alianças para presidência da República, sob o argumento de que os partidos políticos devem ter caráter nacional. Caso assim o quisesse o nosso representante constituinte, ao invés de caráter ele teria consolidado expressão âmbito nacional.
Decisão judicial de conseqüências claramente políticas, a decisão do TSE só vem engrossar a lamentável carência de autocompreensão democrática do Judiciário brasileiro que tende, como nesse caso, a usurpar atribuições constituintes para as quais está em déficit de legitimidade e se distância cada vez mais da idéia de uma verdadeira democracia judiciária. Perde o sistema partidário brasileiro, perde toda sociedade, perde mais uma vez a já frágil democracia representativa brasileira.
Orides Mezzaroba é professor do Curso de Graduação em Direito, coordenador do Programa de Pós-Graduação de Mestrado e Doutorado em Direito da UFSC e pesquisador do CNPq.
e-mail: orides@ccj.ufsc.br
