A verdade em Carnelutti e os novos caminhos do Processo Penal Brasileiro

“A verdadeira verdade é sempre inverossímil”.
Fiodor Dostoievski

1. Introdução

Falar da verdade no processo penal implica falar do trabalho de Francesco Carnelutti e seu memorável texto Verità, Dubbio e Certezza(1), que representa um marco importante na busca por mudança do paradigma vigente no direito processual penal em matéria de produção e análise da prova. Seu pensamento representa um ponto de partida para demonstrar o caráter falacioso do processo penal brasileiro, onde, infelizmente, ainda se fala em “duas verdades” (formal e real), que, por isso, são “mentirosas”. É tempo de reconhecer que verdades são inatingíveis, pois todo saber só tem validade até que outro o negue.

2. A Inquietude de Carnelutti

Já nas primeiras linhas do texto Verità, Dubbio e Certezza, é possível perceber a inquietude de Carnelutti com a questão da verdade no processo. Inicialmente, em sua obra La Prova Civile(2), Carnelutti sustentava que o grande escopo do processo era a investigação da verdade substancial para se chegar, apenas, a uma verdade formal. Mas, em Verità, Dubbio e Certezza, influenciado por Heidegger, ele percebe que “a verdade não é, e nem pode ser, senão uma só: aquela que eu, como outros chamava de verdade formal, não é a verdade”. Dessa forma, Carnelutti constata o equívoco do seu pensamento inicial e reconhece que o processo jamais será instrumento hábil para conduzir o homem à verdade.

Apoiado no pensamento de Heidegger(3), o processualista italiano constata toda a parcialidade daquilo que denominava verdade, e vê a finitude do ser-aí (dasein). Nesse encontro filosófico, Carnelutti destaca em seu trabalho que “a coisa é uma parte; ela é e não é; pode ser comparada a uma moeda sobre cuja cara está gravada o seu ser e, sobre a sua coroa, o seu não-ser”. Com isso, ele passa a reconhecer que a verdade da coisa, ou de parte dela, exige o conhecimento do seu não-ser. Assim, para chegar à verdade, é necessário conhecer não somente aquilo que algo é, mas também aquilo que esse algo não é, de modo que a verdade de uma coisa por nós é ignorada até que possamos conhecer todas as outras coisas, sob pena de termos apenas um conhecimento parcial dessa coisa. Neste ponto, Carnelutti magistralmente sentencia: “a verdade está no todo, não na parte; e o todo é demais para nós”. Com essas palavras o grande processualista desvelou a impossibilidade de se chegar à verdade, de modo que algo deveria preencher essa falta fundante. Por isso, Carnelutti, ao intuir que o ser está no mundo da linguagem, onde não há coisa alguma onde falta a palavra, tratou de eleger a busca da certezza como escopo do processo, deixando a verdade para o plano divino, evidenciando o seu desejo de plenitude e de aniquilamento que habita a melancolia, afastando-se, assim, da linha de pensamento heideggeriana. Mesmo nessa nova fase, é perceptível que seu pensamento ainda está vinculado à concepção platônica de verdade, dicotomizada entre essência-matéria e corpo-espírito(4).

Carnelutti trabalhou a etimologia da palavra certeza e, assim, aprimorou o conceito por ele desenvolvido, afirmando que se trata de uma escolha. Baseando-se na origem latina da palavra cernere, ele a viu como sinônimo de escolher, de modo que a certeza não passaria de uma escolha, que consubstancia o drama de todo processo. Afinal, na raiz do conceito de certeza está sempre uma dúvida, não havendo como negar a grande relevância dessas constatações para a transformação do processo penal.

A dúvida aflige todo julgador no momento de acertar o caso penal, pois nessa estrada o processo há uma bifurcação (condenar ou absolver) e uma decisão deve ser tomada, ainda que esse agir judicial esteja impregnado de dúvida. Tal dúvida, macroscópica ou microscopia, é indelével, ficando, assim, tormentosa a atividade judicante, pelo menos para os juízes não afetados pela arrogância que enfrentam esse dilema fora de sonhos dogmáticos ou quadros mentais paranóicos. Não há silogismo capaz de afastar essa bifurcação que configura a dúvida de todo julgamento.

De qualquer modo, segundo Carnelutti, é necessário escolher, ainda que seja para recusar uma efetiva escolha, absolvendo-se o acusado por falta de provas, que consubstancia um sintoma do insucesso da administração da justiça. No seu dizer, “o juiz, quando absolve por insuficiência de provas, confessa a sua incapacidade de superar a dúvida e deixa o imputado na condição em que se encontrava antes da discussão: imputado por toda a vida”. Dessa forma, segundo ele, ficaria o julgador livre do pesado fardo de julgar, malgrado se tratar de uma solução nociva para a justiça, a qual deve dirigir-se com um sim ou com um não. Em que pese à crítica de Carnelutti, a ação de declarar o non liquet é salutar para a manutenção da democracia, eis que se trata de uma garantia do cidadão. Isso está na raiz do liberalismo: a inalienação da liberdade individual. Ao Estado é vedado violá-la, devendo ser o seu principal garantidor na via do devido processo legal(5).

Claramente, um novo Carnelutti surge no final da sua existência e, influenciado pela filosofia heideggeriana ainda que de modo distante , enriquece o seu discurso de modo transdisciplinar. Ele tenta deixar o conforto metafísico e passa a perceber a finitude do dasein, bem como o fim das verdades fundantes, inatingíveis por qualquer método totalitário e pretensioso, razão pela qual ficou eliminado o conhecimento fundante em que acreditava inicialmente, apesar de não abandonar a matriz metafísica.

3. Carnelutti e a Construção do Novo Processo Penal

A partir das profundas reflexões de Carnelutti, que, em 1965, representaram um corajoso corte epistemológico, é possível a construção de um novo processo penal, vinculado ao sistema acusatório, cujo princípio unificador é o dispositivo(6). Apesar da totalidade que ainda acomete o pensar dos atores jurídicos, um processo penal democratizado é possível, por intermédio de estudos transdisciplinares, ainda que grande seja a resistência daqueles que estão em situação aparentemente confortável(7).

Verdade, dúvida e certeza são elementos do processo. E, o processo deve ser entendido como atividade recognitiva, ou seja, um lugar onde o juiz tem o poder de dizer o direito no caso concreto, objetivando o acertamento do caso penal, por intermédio de um conjunto de atos preordenados. Esses atos preordenados têm como fim afastar a ignorância judicial em relação aos elementos que constituem o fato punível e a sua autoria. Sem dúvida, para a consolidação da democracia, a instrução e a recognição devem obedecer ao princípio do devido processo legal (CR, art. 5.º, LIV), respeitando-se os direitos e garantias individuais, evitando-se a barbárie ou o estado de natureza hobbesiano. Aqui aflora a principal função do julgador durante a instrução e recognição: garantir os direitos fundamentais da pessoa(8).

Importante lembrar que o fato punível é um acontecimento histórico e a prova a ser produzida durante a instrução é o meio para se buscar a recognição da versão histórica mais verossímil. Trata-se do juízo de verossimilhança, de que falava Calamandrei. Desde este ponto, é possível concluir que o processo nunca terá como conteúdo a verdade, como inicialmente queria Carnelutti. Miranda Coutinho destaca que Carnelutti foi o primeiro processualista a ver que os julgamentos são lançados sobre algo que, desde o início, sabe-se não ser verdadeiro, derrubando a fabulosa idéia de segurança jurídica(9). Não reconhecer isso é fundar o processo penal dentro da lógica da totalidade, negando a alteridade e, consequentemente, ferindo a ética. Essa lógica da totalidade parte de um plano metafísico para deduzir tudo a partir de uma unidade, ou seja, sua teoria tem como alvo o uno na condição de origem e fundamento do todo. A unidade figura como fundamento, em detrimento da multiplicidade. Entretanto, essa ideologia que permeia a análise e produção da prova no processo penal, por ser fruto da totalidade que a possibilitou paradigmaticamente, encobre o mundo que se situa além da sua lógica, negando e ocultando o mundo da alteridade(10).

Obviamente, estamos diante da impossibilidade de alcançar a verdade por meio do processo, sendo flagrante a insegurança daí decorrente. Malgrado o discurso da verdade ser difundido na academia e nos fóruns de justiça, só é possível a certeza de que qualquer axioma pode ser manipulado por esse discurso que, via de regra, fala do “interesse coletivo” ou da “segurança pública”, evidenciando seu caráter retórico.

Nessa angústia da busca por certeza no processo penal (leia-se: escolha), nem mesmo o legalismo rasteiro, inerente ao discurso positivista (totalitário) é capaz de resolver os problemas trazidos pela dúvida. Além disso, nesta quadra do pensamento filosófico, não é cabível invocar o enunciado da “bondade da escolha”, como fez Carnelutti. Afinal, historicamente, está comprovado que vários justiceiros foram responsáveis pela execução das maiores atrocidades praticadas contra a humanidade, tendo como base o discurso da bondade, onde tudo é feito em nome do “amor”, do “são sentimento do povo alemão”, “da segurança nacional” ou “do interesse coletivo”, por exemplo.

Destarte, inequivocamente, é necessária uma nova compreensão do fenômeno processual, mormente, da ação de julgar.

4. Decisão Penal e o “Juiz Bricoler”

Reconhecida a intangibilidade da verdade e os riscos da certeza, mormente após a descoberta do inconsciente freudiano, novos modelos de construção e análise da prova no processo penal necessitam ser empregados para socorrer a democracia material. Nessa missão, primorosa é a tese de Alexandre Morais da Rosa ao tratar da verdade processual como bricolage de significantes, avesso à epistemologia(11).

Inspirado no trabalho de Lévi-Strauss, Alexandre Morais da Rosa fala da atividade do bricoler, referindo-se àquele que executa um trabalho sem que exista um plano rígido previamente definido, deixando-se levar pelos utensílios que tem à disposição, construindo, remontando, colando e integrando o material disponível. Esse é o modo que deve o juiz atuar durante a instrução e recognição processual, pois, assim, aproxima-se do sistema acusatório ao deixar de ser o gestor da prova, não se vinculando à acusação e construindo a sua decisão conforme o material que é trazido pelas partes, observando-se o ônus probatório delas.

Nesses moldes, a bricolage faz com que a atividade jurisdicional se guie pelo recolhimento dos significantes produzidos pelas partes, alinhando-os somente ao final, no ato decisório, que materializa o momento de interseção com a sua singularidade e os inevitáveis condicionantes (inconscientes, ideológicos, midiáticos, criminológicos, éticos, dentre outros). Assim, o juiz maneja a técnica de bricolage jurídica (construindo com o que tem nas mãos), sem a pretensão de controle racional total(12).

A partir dessas premissas, a verdade processual exsurge da confluência dos significantes lançados no processo como pretensão de validade intersubjetiva, articulados com o inconsciente do um-juiz, sem chegar na solidez da verdade real, por ser inalcançável, restringindo-se ao coágulo de sentido possível no tempo e no espaço. Esse modelo de jurista aceita deslizar/ousar com e nos significantes, mantendo eticamente um diálogo (atribuição de sentido) equidistante das partes, ao contrário da figura do jurista tradicional que busca a “verdade verdadeira”. Enfim, o juiz-bricoler navega na linguagem e aceita o jogo com os significantes, desprovido de uma hipótese a ser preenchida, ao contrário do que sempre é almejado pelo juiz-inquisidor(13).

5. Considerações finais

Julgar é preciso, já dizia Carnelutti. Porém, não se pode deixar de reconhecer a paz perpétua em que repousam as verdades fundantes, desde o desvelar da finitude do dasein, promovido por Heidegger. Não é mais possível imaginar que um ato de fé seja suficiente para acertar um caso penal. Seja esse ato de caráter religioso, místico ou fruto da melancolia que acomete a todos, após esse desvelamento. Devemos enfrentar os problemas inerentes ao processo penal de modo (in)consciente, atentos ao giro linguístico e, principalmente, aos princípios democráticos.

Para um novo processo penal, é indispensável a humildade em reconhecer que a instrução e a recognição fazem a reconstrução de um fato histórico e tal reconstrução é sempre minimalista e imperfeita, sob pena de equiparar o real ao imaginário, esquecendo que o passado só existe no imaginário e, por isso, jamais será real. Portanto, inegavelmente se trata de um labirinto de subjetividade e contaminações ideológicas(14).

Notas:

(1) CARNELUTTI, Francesco. Verità, dubbio e certezza. Rivista di diritto processuale. Padova: Cedam, 1965, p. 4-9, vol. XX.
(2) CARNELUTTI, Francesco. La prova Civile: Il concetto giuridico di prova. Milano: Giuffrè, 1992.
(3) HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer, 1927.
(4) ROSA, Alexandre Morais da. Fragmento de Melancolia: aproximações sobre a glosa de “Verdade, Dúvida e Certeza” de Carnelutti. Jornal O Estado do Paraná, Curitiba, coluna “Direito e Justiça”, 10 nov. 2002, p. 8.
(5) MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Glosas ao “Verdade, Dúvida e Certeza”, de Francesco Carnelutti, para os operadores jurídicos. Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre, v. 4, n. 14, p. 90, 2004.
(6) MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Introdução aos princípios gerais do Direito Processual Penal Brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, a. 30, n. 30, 1998. p. 163-198.
(7) MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Glosas ao “Verdade, Dúvida e Certeza”…, p. 79.
(8) MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Glosas ao “Verdade, Dúvida e Certeza”…, p. 79-80.
(9) MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Glosas ao “Verdade, Dúvida e Certeza”…, p. 81.
(10) Inspirando-se nas idéias de Enrique Dussel, Celso Luiz Ludwig afirma que “o sentido ético da totalidade se explica tendo como fundamento parâmetro e limite, concepção onde o múltiplo é admitido apenas como diferenciação do Uno na mesma Totalidade (seja no paradigma do ser, como fysis entre os gregos, seja na moldura paradigmática da subjetividade do sujeito, entre os modernos, seja no paradigma da comunicação, como participante da argumentação, na pós-modernidade). Essa concepção ética, no entanto, é ideológica, dado que fruto da lógica da totalidade que a possibilita paradigmaticamente, e que, por sua vez, também é ideológica, enquanto encobridora do mundo que se situa além da lógica da totalidade, negando e ocultando de tudo ao “mesmo”, nega a possibilidade real da outra lógica, a lógica da alteridade”. In LUDWIG, Celso Luiz. Para uma filosofia jurídica da libertação: paradigmas da filosofia, filosofia da libertação e direito alternativo. Florianópolis: Conceito, 2006. p. 144.
(11) ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 363-369.
(12) ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal…, p. 365-366.
(13) ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal…, p. 367-367.
(14) LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. 4. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 555-557.

Leandro Gornicki Nunes é Advogado Criminalista. Professor de Direito Penal e Criminologia na Universidade da Região de Joinville (Univille). Especialista em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (USAL) e Mestrando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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