A área de saúde da universidade brasileira, principalmente os cursos médicos, qualquer que seja a estrutura curricular que formalmente se proponha, organiza a formação de seus alunos de modo tradicional e, freqüentemente, em desacordo com as necessidades da sociedade. Em geral, os cursos médicos (e das outras profissões da área de saúde) se efetivam em hospitais universitários voltados para si mesmos, ignorando a comunidade.
Não porque seus serviços técnicos sejam inoperantes ou ineficazes. Longe disso. Ao menos até recentemente, os serviços médicos acadêmicos eram os melhores dentre os oferecidos pelo setor público. E, de certo modo, estão a serviço das comunidades, porque sua clientela provém dali. A diferença é mais sutil, mas, nem por isso, desimportante. Nos hospitais universitários brasileiros, a comunidade não é percebida como finalidade maior de sua existência, mas como meio para atingir seu propósito nominal: formar profissionais eficientes. Ainda que essa formação não seja a que a sociedade necessita para seu desenvolvimento.
Ver o processo de formação médica pela ótica da eficiência do aluno formado, de modo geral, não é incorreto. Mas, com toda certeza, se configura visão demasiado simplista. Mesmo omitindo outros interesses que costumam contaminar a realidade acadêmica (vaidade, cupidez, preguiça, inoperância, etc.). Principalmente se observado o grande potencial da comunidade universitária para implementar e promover o desenvolvimento social. Ao que se alia a perspectiva concreta do saber popular: enriquecer as ações da Academia.
Em todas as sociedades, a universidade e a comunidade na qual ela está inserida tendem a guardar estreita possibilidade de interação, que não deve ser ignorada pelo planejador acadêmico e por quem faz política na universidade. Interação que pode ser positiva ou negativa. O desenvolvimento da sociedade e o progresso da universidade costumam resultar em um círculo virtuoso, quando positivos, e em um círculo vicioso, se negativos.
Atualmente, a relação da comunidade universitária médica (além de outras, que não vêm ao caso aqui) com a população ocorre pelos projetos de extensão, geralmente pontuais, descontínuos, superficiais ou, de qualquer modo, sem a abrangência que lhes é necessária, os quais não são considerados como prioridade quando comparados aos cursos de graduação, como se houvesse uma solução de continuidade entre as atividades de graduação, extensão e pesquisa, que do ponto de vista da formação acadêmica são indissociáveis.
As unidades de saúde pública, principalmente o Programa Saúde da Família, apesar das deficiências bem conhecidas e apontadas, possibilitam a relação direta dos formandos com a população e permitem a vivência da atividade em equipes multiprofissionais. Experimentar a relação com os pacientes como pessoas concretas, vivendo em situações familiares e sociais reais, e não como reduzidos a casos clínicos ou personagens mais ou menos idealizados e desarraigados, constitui um componente formativo inigualável. Talvez, a melhor vacina contra o burocratismo. O trabalho em equipes multiprofissionais, em que pesem os riscos também bastante conhecidos, possibilita o trabalho comum, o desenvolvimento do respeito mútuo e o fomento da tolerância e da camaradagem.
O que favorece o bom desempenho da atividade acadêmica abrangente, centrada na comunidade, onde as ações hoje consideradas de ensino, extensão e pesquisa aconteçam de forma inter-relacionada e simultânea, sempre na perspectiva da construção do saber. Entretanto, para que isso ocorra adequadamente, faz-se necessário que a universidade assuma inteiramente a sua responsabilidade social e se insira integralmente no todo do Sistema Único de Saúde (SUS).
As atividades de ensino, se desenvolvidas em parceria com o SUS, nas unidades de atenção à saúde, mantendo relação estreita e contínua com a sociedade, na perspectiva da formação do profissional de saúde, particularmente do médico, serviriam para que a comunidade pudesse participar – não de forma passiva, mas sim como um dos atores mais importantes para a elaboração de um profissional de saúde no qual as necessidades e as riquezas da coletividade agissem como um molde qualificado na composição de um ser acadêmico integral. Onde a comunidade, como pólo ativo, possa influenciar nas modificações da dinâmica interna da universidade que, em última análise, só será legítima se refletir, nas suas ações, todas as variáveis que são interesses prioritários da sociedade.
É uma inverdade achar que o processo de formação só é ideal se acontecer intramuros, através de uma discussão sempre teórica e baseada no suposto saber de uns poucos em detrimento da imensidão de conhecimentos e experiências que sabidamente existem na cultura popular em um processo de acúmulo secular.
Penso que só desse modo poderemos almejar formar um médico, ou um profissional de saúde, com uma excelente formação técnica e visão holística da vida, das questões relativas à saúde, entendendo que as variáveis que contribuem para este caos social não é da responsabilidade exclusiva do cidadão, passando primeiro por uma série de fatores socioeconômicos e políticos, históricos e atuais, que faz com que o atual nível de subdesenvolvimento social em que se encontra a nossa população, incompatível com o atual estágio de desenvolvimento tecnológico, seja igual ao dos considerados como os piores países da África, com Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) tão baixos que são alarmantes. Só desse modo poderemos formar um profissional médico realmente cidadão ou cidadã.
Alceu José Peixoto Pimentel é conselheiro federal por Alagoas e membro da Comissão de Ensino Médico do CFM. alceupimentel@cfm.org.br