Peter Häberle

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A Universidade alemã com a sua grande tradição desde W. von Humboldt, sobreviveu a duas guerras mundiais, duas ditaduras e até mesmo a Revolução de 1968, essa última com a ajuda do Tribunal Constitucional Federal e da liga Freiheit der Wissenschaft (Liberdade para a Ciência). Ela constitui-se em uma parte essencial do direito constitucional da cultura dos Estados alemães, expressão de sua identidade cultural responsável e plural.

Hoje ela encontra-se talvez na sua mais difícil crise, como provavelmente em nenhum outro país da Europa. Análises superficiais sobre a ?identidade? da Universidade alemã não nos deixam enganar.

Três desafios a colocam em risco:

(i) a Europeização e a internacionalização, que naturalmente também oferecem chances, especialmente na Jurisprudência, como os ?juristas europeus? no quadro de uma sociedade aberta de formação e ciência;

(ii) o avanço impiedoso do espírito economicista em quase todas as dimensões da vida (em vez da busca altruísta da verdade, o pensamento de eficiência voltado ao momento e o excesso de utilitarismo);

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(iii) a supremacia das ciências naturais e de engenharia em detrimento das (que de forma alguma se encontra em crise) ciências humanas, as quais se obrigam enfim, conjuntamente, para com a existência humana digna.

Um desenvolvimento especialmente arriscado encontra-se no chamado Exzellenzinitiative (iniciativa de excelência) da União e dos Estados, desde 2005. A promessa é de se criar as chamadas Universidades de Elite (1,9 bilhão de Euros divididos em quatro anos). Elogiável é somente a sua distância em face dos interesses político-partidários. Os perigos encontram-se na supremacia das ciências naturais, na pouca valorização das ciências humanas e no desalojamento das chamadas disciplinas de perfumaria, como o direito bizantino e o direito grego antigo. Questionáveis são os esboços de projetos conjugados ad hoc com vinculações a projetos realizados passo a passo, as redes com fim em si mesmas e as concepções presunçosas de futuro, às quais nem um novo Aristóteles, nem o ?Google? poderiam satisfazer. A Alemanha Oriental é levada a disputar essa concorrência por excelência em condições de desigualdade. O Princípio da Crença no Autofinanciamento, no qual as disciplinas das ciências humanas têm naturalmente piores chances, aponta para um desenvolvimento especialmente mal-aventurado. A instituição de órgãos de controle e credenciamento distanciados das Universidades, os conselhos de ensino superior bem como a crescente prepotência dos órgãos de direção universitários, as custas das faculdades são uma violação da liberdade de pesquisa e ensino, conforme o artigo 5, inciso 3 da Lei Fundamental alemã(1) como, ao seu tempo, a paridade entre professores, alunos e servidores (Drittelparität). Acresce-se a isso o peso da burocracia devido a um excesso de avaliações recíprocas.

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Especialmente as ciências jurídicas alemãs ainda não estão em risco em razão do infeliz chamado Processo de Bolonha (Bachelor/Máster-System) em igual medida como outras ciências (diferente, infelizmente, da Suíça). Na Europa da pluralidade querer forçar o direito e a ciência do direito a se dividirem em módulos atingiria no âmago as realizações próprias das culturas jurídicas nacionais desde a Itália até a Grã-Bretanha. Assim, como o jurista europeu tem que ser versátil e dominar o maior número de idiomas possível, deve ele continuar a estudar, no âmbito do desenvolvimento do direito europeu comum, a especificidade das culturas jurídicas nacionais.

Aqui alguns exemplos: Na França deve-se estudar especialmente a forma de comentário jurídico no estilo influenciado por Descartes; deve-se ir a Grã-Bretanha para entender as vantagens e desvantagens da tradição da common law; na Alemanha se deve buscar estudar as brilhantes realizações dos clássicos de Weimar e do Tribunal Constitucional Federal; deve-se trabalhar na Áustria para poder estudar o positivismo de um Hans Kelsen e a Constituição de 1920, bem como o momento de nascimento da jurisdição constitucional na Europa. Tudo isso não pode ser quantificado nem modulado.

Mesmo que a concorrência entre faculdades e suas universidades respectivamente possa ser enriquecida por meio de uma especialização em uma área a partir do quarto semestre de direito, no sentido de um federalismo concorrencial no âmbito de um Estado Federal republicano, ela precisa, como toda disputa, ter seus limites (culturais). Universidades não são empresas e fábricas, mas fóruns culturais de tradição centenária para estudantes e mestres: para a formação e educação. A chamada iniciativa de excelência, em cujo ápice encontra-se a ex-Ministra Bulmahn, sempre subordinada ao Tribunal Constitucional, não permite que pequenas universidades (completas) apareçam como excelentes e as coloca em um falso espectro sem meios financeiros necessários; ela também se refere somente a Faculdades isoladas e não a Universidades em sentido amplo. As Universidades na Alemanha há muito tempo são expressões da pluralidade cultural dos Estados alemães, tendo elas um perfil bem característico. Todas as instituições de ensino superior possuíram e possuem até hoje ilustres professores, que promovem a ?unidade entre ensino e pesquisa? bem como a relação entre ?isolamento e liberdade? e praticam o Eros pedagógico (Platão). Aos docentes engajados o ensino pode ser uma ?fonte de juventude? (Jungbrunnen). A idéia da pesquisa em grupo ao invés da pesquisa individual é questionável. Não poucas faculdades promovem hoje pesquisa de ponta como nas áreas da música e do direito comparado. Seminários como os de Rudolf Smend em Göttingen ou de Konrad Hesse em Freiburg continuam a influenciar as gerações posteriores. O mesmo vale para as aulas (Vorlesungen) de um Hans Georg Gadamer em Heidelberg.

Naturalmente também há ensejo para uma auto-crítica do corpo docente: não apenas nas faculdades de direito propaga-se uma tendência ao constante turismo de congressos e também ao exercício da prática de pareceres. Também a avalanche de publicações é caracterizada pelo Princípio norte-americano ?publish or perisch?. A publicação de manuais em vez de monografias é uma idéia infeliz. Dos estudantes se exige, por sua vez, que atentem não somente para a rapidez e eficiência de seu curso superior, bem como eles precisam estar dispostos a reconhecer os fundamentos de sua área e a partir disso organizar todo o conteúdo a ser supostamente dominado. O pagamento de mensalidades em um Estado Social somente é aceitável quando for socialmente sustentável, por meio de bolsa de estudos que corresponda ao desempenho dos estudantes. Programas europeus de intercâmbio como ?Sokrates? e ?Erasmus? são positivos nesse sentido.

Por fim, a opinião pública e sobretudo a política e também as burocracias, devem ter em mente que toda ciência serve a busca da verdade, especialmente na jurisprudência juntamente com os esforços de justiça para os cidadãos de uma sociedade aberta comprometida com o bem comum. A pesquisa de base permanece irrenunciável, o que entre outras a Carta de Direitos da União Européia de 2005 desconsidera para os pesquisadores.

A Universidade alemã, como sempre, graças às idéias diretivas de Humboldt, continua a gozar de alta consideração no exterior, sobretudo na América Latina, Itália e Espanha, Europa Oriental, Japão e Coréia do Sul. Também sua contribuição para o ensino e a educação é legendária. É nociva a cópia irrefletida de modelos norte-americanos como Harward e Yale, que surgiram sobre uma base bem diferente (privada). Havia um tempo em que os estudantes americanos procuravam formação universitária na Europa, principalmente na Alemanha.

Humanismo e iluminismo estão tão presentes na cultura de um F. Schiller e um J. W. von Goethe, assim como nos artistas europeus como Leonardo e Dürer. Em conexão com a bem lograda democracia formada pela Lei Fundamental e a correspondente Teoria do Estado, bem como com a jurisdição do Tribunal Constitucional Federal, forma-se um ideal clássico-atual da Universidade alemã, que se espalha pela Europa e pelo mundo. Por que tudo isso deveria ficar como vítima de um modismo (Zeitgeist) de maximização, unitarização e quantificação dos recursos econômicos? Justamente a Europa não vive da economia, que tem uma importância indispensável, porém somente instrumental assim como o mercado como um todo: o homo economicus é apenas um aspecto parcial da complexa condição humana. A Europa vive da pluralidade de suas culturas, as quais encontraram nas Universidades de Greifswald até Tübingen a sua forma mais nobre. Sem essas concepções o ano de 2007, proclamado como ?o ano das ciências humanas?, ameaça se tornar mero simbolismo.

Notas:

Artigo publicado no Juristenzeitung 4/2007, p. 183-184. Tradução pelo Prof. Dr. Marcos Augusto Maliska e Profa. Msc. Elisete Antoniuk, no quadro de Cooperação Acadêmica entre o NupeConst/UniBrasil e o Forschungstelle für Europäisches Verfassungsrecht da Universidade de Bayreuth, Alemanha.

(1)  ?A arte e a ciência, a pesquisa e o ensino são livres. A liberdade de ensino não dispensa da fidelidade à Constituição?.

Peter Häberle é professor emérito das Universidades de Bayreuth (Alemanha) e St. Gallen (Suíça).