Recente decisão judicial que submeteu um casal de membros da igreja Testemunhas de Jeová a júri popular, em razão da negativa em autorizar a transfusão de sangue em favor de sua filha, que veio a falecer, reacendeu a velha controvérsia sobre a possibilidade de a transfusão ser realizada contra a vontade do paciente, ou de seus representantes legais, nas hipóteses de risco de vida. A polêmica também se estende ao transplante de órgãos. Alguém com insuficiência renal crônica, por exemplo, poderia ser submetido, contra a sua própria vontade, a um transplante de rim?

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O art. 15 do Código Civil de 2002, a princípio, traz regra proibitiva, nos termos seguintes:

Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.

Esse dispositivo introduziu no novo Código Civil os direitos do paciente, valorizando os princípios da autonomia, da beneficência e da não-maleficência e assegurando o direito de recusa a tratamento arriscado.

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A proibição de atos de intervenção cirúrgica não autorizados, aí incluídos, naturalmente, a transfusão de sangue e os transplantes de órgãos, constituem corolário lógico do direito à integridade física e o novo Código Civil consagrou de modo expresso a liberdade de não ser compelido a tratamento médico ou cirúrgico, quando presente o risco de vida.

O dispositivo, no entanto, deve ser interpretado restritivamente, não podendo jamais priorizar a liberdade do paciente em detrimento à vida, que tem primazia constitucional.

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A Constituição Federal, em seu art. 5.º, no resguardo dos direitos e garantias fundamentais, tutelou os mais relevantes direitos da personalidade, assegurando, por exemplo, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade.

Entre esses direitos fundamentais e personalíssimos, alguns gozam, indubitavelmente, de primazia constitucional sobre outros.

O primeiro e mais importante direito da personalidade é o “direito à vida”, decorrente do princípio constitucional do respeito ao ser humano, tido como linha mestra e posto pelo constituinte em ordem de precedência em relação aos demais.

O direito à vida é o mais fundamental direito tutelado pelo ordenamento jurídico. Mais do que essencial, é um direito “essencialíssimo” [1], porque dele dependem todos os outros direitos, razão pela qual a sua proteção se dá em todos os planos do ordenamento: no direito civil, penal, constitucional, internacional, etc[2]. Como bem lembra Luiz Edson Fachin, o direito à vida é “condição essencial de possibilidade dos outros direitos. Desenvolve-se aí a concepção da supremacia da vida humana e que, para ser entendida como vida, necessariamente deve ser digna”[3].

Dentre as manifestações do direito à vida, decorre, também, o direito à integridade física[4]. Já os direitos à liberdade e à igualdade, sem prejuízo de sua cumulatividade, e sempre que verificada situação de conflito ou antinomia interna, devem ceder lugar ao direito à vida.

Isso porque todos os princípios, positivados ou não no texto constitucional, podem ser limitados por outros princípios com os quais entrem em colisão, exigindo-se, portanto, que sejam submetidos a regras de ponderação, sobre as quais remetemos o leitor à clássica obra de Robert Alexy[5]. Havendo colisão entre princípios ou entre garantias fundamentais, além da operação de ponderação, cabe ao intérprete recorrer também a um outro princípio como critério solucionador, que é exatamente o “princípio da proporcionalidade”, também chamado de “princípio dos princípios”[6]. Comparando o peso de cada bem jurídico e de cada um dos princípios em jogo, o legislador ou o intérprete decidirá, no caso concreto, a qual deles dará prioridade[7].

Assim, sempre que houver um confronto entre direitos personalíssimos de um mesmo titular, deve-se observar a ordem de prevalência posta no pergaminho constitucional.
Daí porque o direito à liberdade não prevalece sobre o direito à vida, de modo que ninguém é livre para atentar contra a própria vida ou mesmo contra a integridade de seu corpo (CC, art. 13), nem ao paciente é dado o direito de recusar o tratamento médico que lhe venha a salvar a vida (CC, art. 15).

O “direito à vida” não significa que o ser humano seja dono absoluto de sua vida ou de seu corpo, a ponto de ter direito sobre a própria morte. Razão pela qual alguns autores, a exemplo de Santos Cifuentes, preferirem o uso da expressão “direito de viver”[8]. Como primeiro enumerado em todo e qualquer catálogo de direitos humanos, esse direito, mais do que um direito individual, é necessariamente um direito de toda a humanidade, no perfeito paralelo com a famosa poesia do padre anglicano John Donne[9]. A cada pessoa não é conferido o poder de dispor da vida, sob pena de reduzir sua condição humana.

Em suma, o art. 15 só pode ser invocado se presentes simultaneamente dois requisitos: 1. A intervenção cirúrgica implicar em risco de vida; 2. Tal intervenção não for a única forma de salvar a vida do paciente. Se a intervenção cirúrgica, inclusive nos casos de transplante, objetiva salvar a vida do paciente, constituindo a única forma de fazê-lo, não pode ser obstada. Como também não pode ser obstada quando não houver risco de vida, não prevalecendo a vontade do paciente em hipóteses outras, como, por exemplo, nos casos em que houver necessidade de transfusão de sangue, vedada em determinadas religiões.

A responsabilidade, no entanto, não deve ser atribuída exclusivamente ao paciente ou aos seus representantes legais, mas também aos médicos responsáveis pelo atendimento e que deverão ser igualmente responsabilizados pela omissão na adoção de providência urgente, apta a salvar a vida do paciente.

Notas:

[1] A expressão é de Santos Cifuentes (Cf. CIFUENTES, Santos. Derechos personalísimos. Editorial Astrea, 2.ª ed..Buenos Aires: 1995, p.232)
[2] Idem.
[3] Texto cit.
[4] Não se pode falar em direito à vida, sem falar em direito à integridade física, já que a vida humana se manifesta através do corpo. O ser humano é antes de tudo uma realidade corpórea; ele não tem um corpo, ele é corpo(Cf. CIFUENTES, Santos. Op. cit,, p.231).
[5] ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1993.[1] Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago.
Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Celso Bastos, 1999.
[6] Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Celso Bastos, 1999.
[7] Esse balanceamento, em última instância será feito pela Corte constitucional que, valendo-se do juízo de razoabilidade, fará a comparação entre a pluralidade de valores envolvidos em uma certa fatispécie com a concreta relação meios-fins que o legislador haja instituído em determinada lei.
[8] Op. cit., p. 232.
[9] Oportuna, aqui, a transcrição de excerto do sermão “Meditação XVII”, escrito em 1624 pelo padre anglicano e poeta John Donne e que inspirou o escritor Ernest Hemingway ao titular seu mais popular romance “Por Quem Os Sinos Dobram”: “Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”

Mário Luiz Delgado é advogado. Sócio de Martorelli & Gouveia Advogados, vice-presidente da Comissão de Direito Civil da OAB-SP, mestre em Direito Civil pela PUC e doutorando em Direito pela USP, professor de Direito Civil da EPD – Escola Paulista de Direito e diretor regional do IBDFAM-SP.