O psicanalista famoso, com expressão séria, atenta, escutava há mais de duas horas a ladainha de queixas, o rosário de lamentações, do cliente a seu lado, deitado no divã tradicional. Eram realmente tristes, amargas, até mesmo patéticas, as confissões que ouvia, como se fosse uma espécie de “strip tease” espiritual – dificuldades financeiras, perplexidades existenciais, incompatibilidade crescente na vida conjugal, agravamento dos problemas do filho viciado em drogas e da filha irremediavelmente promíscua, quase ninfomaníaca.

Contando os seus contos tristes ele ia e vinha, repetia-se, repisava os episódios, numa espécie de recorrência de “moto-perpétuo” ou de Bolero de Ravel. Mas o psicanalista não mais estava interessado nas palavras, no discurso do cliente. Interessava-lhe mais a expressão facial, o movimento dos lábios descorados, o timbre melancólico da voz, às vezes sincopada, como se escondesse um soluço, o tom amarelado do rosto lembrando um pergaminho onde as rugas eram as impressões digitais indeléveis do sofrimento e da dor.

Pensava consigo mesmo, o psicanalista em transe, que jamais, ao longo da sua longa carreira profissional, se deparara com uma depressão tão profunda e tão brutal. Uma frase do cliente, mais que todas, o impressionara vivamente, levando-o quase às lágrimas, a custo reprimidas:

– Desculpe, doutor, mas não sei rir nem sorrir. Sou simplesmente incapaz de dar uma simples risada…

Constrangido, ele perguntou:

– Há quanto tempo não ri?

E ele, meio tímido e inquieto:

– Há quanto tempo não rio? Não sei, não sei bem, mas há muitos, muitos anos…

Era uma resposta inconcebível, quase inacreditável. Veio há mente do psicanalista a célebre frase de Chamfort: “Considero o mais perdido dos dias aquele em que não dou pelo menos uma boa risada…”. E o cidadão infeliz que tinha à sua frente não ria há anos! Não estaria porventura mentindo? Mas por que razão mentir, santo Deus? Afinal, ele estava se confessando a um psicanalista, uma espécie de padre leigo que não dá a absolvição dos pecados prometida por Cristo, mas que procura compreender. E não é a compreensão, afinal, uma forma de perdão?

Fixou-se nos olhos do consulente. Pareceu-lhe ver neles lágrimas secas, incorpóreas, invisíveis. Resolveu fazer uma experiência talvez não ortodoxa, mas, de qualquer forma, capaz de lhe propiciar uma saída ou alternativa terapêutica:

– Por favor, tente dar um sorriso…

O interlocutor estremeceu de leve, como se fosse convidado a cometer uma transgressão ou um crime, e disse, com voz rouca:

– Não consigo, doutor. Não sou capaz…

Mas o psicanalista insistiu:

– Tente, por favor. Isso é muito importante. Tente…

Como se fizesse um esforço prodigioso, forçando os músculos do rosto e dos próprios lábios, tentou atender o pedido ingente. Em vão. O resultado do esforço inaudito foi pífio, muito longe do sorriso pretendido. Apenas lhe aflorou aos lábios um esgar azedo, um ritus amargo, quase uma careta. Sim: era essa a resultante final do seu intento de sorrir – uma careta incaracterística, vulgar. Apesar disso, aquela careta peculiar, esquisita, fez com que o psicanalista se lembrasse vagamente de alguém conhecido -onde e quando? Varreu rapidamente da imaginação essa associação de imagens: seria perder tempo aprofundar o assunto.

Insistiu com o cliente:

– Faça mais uma tentativa, meu caro. Afinal, é tão fácil sorrir…

E ele, muito sério e convicto:

– Engano seu, doutor. É muito mais fácil fazer caretas. Aliás, é isso mesmo que a minha querida esposa, a Margarida, vive dizendo: você só sabe mesmo é fazer caretas… Coitada dela – talvez tenha razão. Aliás, a coitadinha sempre tem razão…

O psicanalista voltou a fixar os olhos cor de cinza no consulente, silencioso, pensativo. Preocupado. Tinha que descobrir sem demora uma receita, um remédio, uma panacéia, uma solução apra o problema quase insolúvel que tinha à sua frente. Era preciso, era inadiável fazer aquele homem voltar a sorrir. Medicações ortodoxas talvez não funcionassem. Era preciso descobrir, sem demora, algo heterodoxo e funcional. Lembrou-se de repente de que, há dias atrás, ele e a esposa tinham feito o que não faziam há muitos anos: ir ao circo. E lá tinham rido como nunca com aquele que era considerado o melhor palhaço do mundo: Chaplin Cantinflas. Um palhaço admirável que não sorria nunca, mas cujas caretas eram impagáveis. Lembrando-se do palhaço famoso, o psicanalista falou para o cliente:

– Dou-lhe um conselho. Hoje, amanhã ou depois, vá ao circo que está na cidade. Você precisa rir – e vai rir, sem dúvida nenhuma. Aquele palhaço impagável certamente vai fazer você dar risada como nunca. Como é mesmo o nome dele? Ah, sim – Chaplin Cantinflas.

No semblante do homem que não sabia sorrir, e muito menos sorrir, a expressão de angústia e desespero acentuou-se. E ele falou em surdina, como se falasse com os seus botões:

– No meu caso, doutor, é irremediável, sem cura…

Perplexo e aturdido, o psicanalista ponderou:

– Como assim? Por que não tem cura?

E ele, falando com a voz úmida de pranto:

– Pois não vê, doutor? O meu nome artístico é Chaplin Cantinflas. Eu sou o palhaço de que o senhor fala…

E um soluço estrangulou a sua voz enrouquecida.

O próprio psicanalista, ante a revelação inaudita, não conseguiu evitar que uma lágrima, qual pétala fria de uma rosa de gelo, deslizasse vagarosamente pela sua face impassível.

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