Parece que a tentativa de elastecer os efeitos de regras jurídicas insculpidas nos artigos 4.º e 5.º do Código de Processo Civil, vem tornando um pouco tormentosa a aplicação do direito mais adequado ao caso concreto.
Quando se trata, então, de ação de divórcio, onde marido e mulher litigam sobre bens, as batalhas podem ser imensas, ocasionando conflitos de ordem processual, aparentemente difíceis de resolução.
Entretanto, há que se tomar determinados cuidados no manejo de tal medida judicial (ação declaratória incidental), não só pelo fato da possibilidade jurídica para tanto, mas também pelo fato da sucumbência, a qual pode afetar sobremaneiramente os interesses do autor da demanda.
E, tal discussão é pertinente quando, por exemplo, a mulher ingressa com uma ação de divórcio contra o marido, e logo após, propõe ação declaratória incidental contra o mesmo e outras pessoas jurídicas, das quais são sócios apenas os parentes do seu marido, com o fito de desconsiderar a personalidade jurídica destas e, conseqüentemente, conseguir bens e cotas de participação nas empresas.
Ocorre que, tal pretensão sofre quatro barreiras de alta estatura, negando qualquer tipo de procedência almejada.
Primeiro, porque o pedido é juridicamente impossível.
Com uma simples análise nos artigos 4.º e 5.º do Código de Processo Civil, chega-se a conclusão de que a natureza jurídica e finalidade da ação declaratória é de esclarecer, tornar certo a dúvida existente numa relação jurídica, tornando-a existente ou inexistente.
Então, há como vislumbrar de plano a impossibilidade do ingresso em juízo com tal ação, pois a autora da ação de divórcio visa, através de uma ação declaratória incidental, com natureza jurídica limitada as partes integrantes do processo principal, principalmente quanto à coisa julgada, atingir bens de terceiros, os quais não têm relação jurídica alguma com o seu marido.
Com isso, a autora da ação está almejando alargar o conceito da ação e os limites da coisa julgada em relação a terceiro completamente estranho à lide principal, com base em argumentos impossíveis de serem declarados num processo desta natureza.
Exatamente isso. O pedido é impossível, pois a intenção consubstanciada pela autora, de desconsiderar a personalidade jurídica de todas as empresas e, ainda por cima, considerar os bens de propriedade do seu marido como se fosse adquirido por um grupo de empresas e, então, estes (bens), por sua vez, teriam participação do seu marido e devem vir integrar o acervo patrimonial do mesmo para melhor divisão de bens, não existe na orla jurídica.
Não há como adotar a argumentação jurídica da Desconsideração da Personalidade Jurídica na ação em voga, haja vista sua impossibilidade de serem apreciados e julgados tais pedidos dentro de uma ação declaratória incidental, a qual possui natureza jurídica diversa da matéria discutida pela autora.
Deixemos de lado a conceituação de pessoa jurídica, a qual é dotada de personalidade própria segundo o artigo 20 do Código Civil Brasileiro, não confundindo-se ambos os patrimônios de pessoa jurídica e pessoa física dos sócios das empresas, para nos atermos ao real objetivo da desconsideração da personalidade jurídica e sua impossibilidade de decretação no processo em voga.
Em termos singelos, o objetivo da desconsideração da personalidade jurídica, através de uma ação judicial, é fazer com que os bens patrimoniais dos sócios da empresa venham responder pelas dívidas contraídas pelas sociedades, quando estes tenham agido de forma ilícita na condução das respectivas empresas. Nada mais.
Nesse sentido, SUSY ELIZABETH CAVALCANTE KOURY, em minuciosa análise do instituto em questão no Direito Alienígena, fincou o seguinte entendimento: “…É preciso notar que, em determinadas circunstâncias, sócios, administradores e gerentes podem responder por dívidas da sociedade. Essa medida tem caráter excepcional e visa a punir aqueles que tenham agido com excesso de poderes ou de maneira contrária à lei ou aos estatutos.” (in, A Desconsideração da Personalidade Jurídica (disregard doctrine) e os Grupos de Empresas), 2 ed., Forense, Rio de Janeiro-RJ, 1995, pág. 86) ? grifo nosso
Então pergunta-se: Onde está a relação jurídica crédito-débito entre autora e todas as pessoas jurídicas aventadas, conforme a natureza jurídica da ação ou pedido referente a Desconsideração da Personalidade Jurídica?
Por outro lado, há que se frisar que a intenção real da autora é perquirir uma eventual fraude perpetrada pelos irmãos de seu marido.
Ocorre que a pretensão esposada pela autora não pode vingar, posto que a pretensão de constituir direitos de propriedade sobre determinados bens, esbarra na própria natureza jurídica da ação declaratória incidental que se dissocia de tais pedidos.
A natureza jurídica da ação declaratória incidental veda categoricamente ambas discussões judiciais.
Relação jurídica de quê? Em relação a quê?
Segundo, porque carece de interesse processual.
Com tal intenção, certamente a autora está almejando subverter toda a ordem jurídica processual, pois se a intenção da mesma é desconstituir a personalidade jurídica das empresas do grupo em si e, concomitantemente, constituir um crédito nos bens de propriedade dos sócios deste grupo, mediante prova de ato fraudatório entre os sócios e seu marido, a ação, certamente, não é a declaratória incidental, mas sim uma ação de natureza constitutiva de seu direito.
Nesse enfoque, não existe interesse processual ponderável na ação declaratória incidental.
Seguindo essa linha de raciocínio, os festejados doutrinadores NELSON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA ANDRADE NERY ensinam que: ” Existe interesse processual quando a parte tem necessidade de ir a juízo para alcançar a tutela pretendida e, ainda, quando essa tutela jurisdicional pode trazer-lhe alguma utilidade do ponto de vista prático.” (in, Código de Processo Civil Comentado, Ed. RT, 3.ª ed., São Paulo-SP, 1997, pág. 532) ? grifo nosso
Terceiro, porque carece de legitimidade passiva.
Com base nos argumentos já dispendidos anteriormente e na própria relação jurídica existente entre ambas as partes, certamente que não existe a pertinência subjetiva no caso em questão.
Onde está a relação jurídica entre autora e demais empresas, das quais o seu marido não faz parte no quadro societário?
Qual o liame jurídico existente entre ambos, para se vincular as empresas em juízo (VARA DE FAMÍLIA), discutindo determinada matéria atinente a autora e seu marido ?
E, é exatamente neste ponto que o Poder Judiciário não pode ser conivente com determinadas condutas agressivas ao patrimônio particular dos jurisdicionados, devendo pronunciar-se imediatamente.
Quarto, porque inexiste litispendência, pressuposto essencial para o ajuizamento da ação declaratória incidental.
Outro requisito indispensável para a regular instauração da ação incidental é a existência da litispendência.
E, porque deve existir tal pressuposto.
Sua resposta é simples e lógica, haja vista que, se o objetivo da ação declaratória incidental é ampliar os limites objetivos da coisa julgada no processo principal, certo é que as partes envolvidas em determinada discussão judicial deverão ser as mesmas, sobre qual irá pesar a força da decisão judicial.
Assim, apenas autora e réu na ação de divórcio são partes legítimas para responder determinados questiúnculas processuais e materiais na declaratória incidental, máxime quando se trata de matérias atinentes ao direito de família, protegidos até mesmo pelo segredo de justiça, salvo melhor juízo.
Quinto, porque o juízo de família é incompetente para apreciar a matéria em questão, em âmbito incidental ou principal.
Uma vez que a autora insta demonstrar a “intenção fraudatória” do seu marido e demais parentes que integram o quadro societário de outras empresas, para que ele (marido) não figure como sócio, visando constituir um direito de propriedade sobre os bens de outrem, caracteriza a ação com uma causa de pedir e pedidos adeptos de uma ação de natureza jurídica constitutiva positiva, e não declaratória.
Simplesmente, a matéria a ser discutida é matéria atinente ao direito civil e não de direito de família.
Para tanto, a autora normalmente argumenta e sustenta a tese de que teria havido fraude, simulação entre o seu marido e demais parentes, onde os mesmos desviaram bens, os quais deveriam fazer parte integrante do acervo patrimonial do seu marido e, por conseguinte, integrar o montante total de bens destinados à divisão na ação de divórcio.
Entretanto, não se coadunam entre si tais feitos, um de matéria cível e outro de matéria de direito de família, onde os limites da lide são cercados por alguns requisitos, dos quais o sistema não permite ampliação.
E, frise-se que, a matéria discutida no processo principal e na presente ação, é diversa.
Portanto, em razão desses vários motivos, as discussões em torno da ação de divórcio se tornam tão tormentosas e desgastantes, ou seja, tudo gira em torno dos bens, do dinheiro que as partes e todo o ser humano sempre almeja. O que, na verdade, precisamos estar atentos é ao modo que olhamos e pensamos o Direito, como fonte de solução dos conflitos sociais ou como “fonte” de investigação e afronta a patrimônios alheios, por motivos transversos dos existentes na legislação pátria.
Ederson Ribas Basso e Silva
é advogado na cidade de Umuarama-PR.