A súmula vinculante e a fossilização do direito

Sou daqueles que percebe como positiva, pelo menos no quadro institucional e político que vivenciamos, certo ativismo judicial, principalmente ante os excessos dos poderes legislativo e executivo. Nunca me permiti, porém, que se desligassem as antenas a respeito da intromissão de um poder de Estado sobre a esfera de competência de outro.

Para a Constituição, a divisão dos poderes concentrados no Estado visa justamente controlá-los. Desta forma procura realizar uma tarefa de concretização improvável: equilibrar, de modo articulado, as forças sociais com as estatais, a fim de que as primeiras possam fazer, minimamente, frente às últimas. O equilíbrio é o elemento que deve caracterizar a ordem constitucional, de sorte que uma distribuição relativamente igualitária de poder se realize.

De fato, em determinado contexto o ativismo judicial deve ser percebido como reforço da lógica democrática. No Brasil, por exemplo, a expansão do poder dos tribunais ocorreu sob inspiração de importante mobilização popular, a partir da reabertura pós-ditadura.

Segundo nossa ordem constitucional, ao Supremo Tribunal Federal compete exercer o controle (concentrado) de constitucionalidade das leis, cabendo-lhe, com exclusividade, a prerrogativa de, ao declarar a invalidade de uma delas, obrigar todos a seguir sua decisão. É o que se chama de eficácia erga omnes.

Não é de fácil assimilação que um poder de reduzidíssima intensidade democrática, como o judiciário o é, possa dar a última palavra a respeito da validade de uma norma aprovada pelos representantes do povo, donde emana todo o poder, diz também a Constituição.

Essa tensão entre Constituição e democracia, em princípio passível de seguir equilibrada, desanda quando se examina a recentemente aprovada súmula vinculante: espécie de norma emanada do STF, com questionáveis semelhanças com as leis.

pior: além de, como as leis, a todos vincular, as súmulas podem acabar interferindo em relações jurídicas que antecederam sua existência. Contra elas, ainda, não podem os demais juízes e tribunais do país, ao contrário do que ocorre com as leis, reconhecer-lhes alguma inconstitucionalidade e recusar sua aplicação.

Daí ficar mais realçado o desequilíbrio institucional que a súmula vinculante traduz. Afinal, ela implica a atribuição de um poder em princípio tipicamente parlamentar, que a rigor sequer ao parlamento se permite: criar direitos e obrigações, de forma geral e abstrata, sem sujeitar-se a qualquer controle.

O mecanismo da súmula foi incorporado à Constituição, através da Emenda nº 45, no final de 2005. Só mais recentemente seu uso tem se intensificado. Isto se tornou mais evidente, coincidência ou não, a partir da posse do Ministro Gilmar Mendes na presidência da Corte.

Não ousaria até porque não é intenção deste texto – discutir o conteúdo das súmulas vinculantes até aqui aprovadas. A última, dedicada a combater o nepotismo em qualquer nível dos três poderes, por exemplo, é certamente positiva e recupera um pouco do ideal republicano ao qual ainda desejamos chegar.

No entanto, da perspectiva do equilíbrio institucional, a súmula vinculante é nefasta. Contribui inclusive para a fossilização da jurisprudência, a fortiori para a cristalização dos sentidos conferidos às normas jurídicas, subtraindo à reflexão coletiva, judicial e popular, a possibilidade de interferir no processo de construção do direito, a partir das práticas sociais que certamente o compõem.

Além disso, do ponto de vista da regularidade procedimental para instituição das próprias súmulas – tarefas para as quais, aliás, os juízes em princípio estão melhor habilitados – a coisa também parece descambar. No texto adicionado à Constituição (art 103-A) previu-se que a súmula vinculante deve ser aprovada por dois terços dos membros do STF, após reiteradas decisões e na forma regulamentada por lei. Pelo que se pode notar, a alguma distância, nem todos estes requisitos têm sido respeitados, mais precisamente aquele que alude à necessidade de uma depuração a que só a repetição e, principalmente, o tempo, podem conduzir.

Foi certamente para prestigiar essa premissa que a lei aprovada pelo legislativo previu importante regra, restringindo o objeto das súmulas vinculantes a situações de grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão (Lei 11.417/2006, art 2.º, § 2.º).

O STF continua a avançar o sinal quando, mais do que uma espécie de “legislador negativo” que apenas suprime do ordenamento jurídico determinada regra legal incompatível com a Constituição entrega-se a formular tais regras, enxertando as decisões dos casos que julga com fragmentos normativos sequer cogitados pelas partes no processo.

É o que tem ocorrido com os enunciados das súmulas. Tal qual o legislador, os ministros têm se dedicado ao exagero de selecionar vocábulos e expressões lexicais mais apropriados na construção de suas súmulas, pretendendo, com isso, açambarcar toda sorte de particularidades que sua aplicação pode ter que contemplar. Como se fosse possível…

O grande Evandro Lins e Silva, certa vez lamentou que o instituto da súmula, para cuja instituição colaborou na condição de ministro do STF, tivesse se degenerando na asfixia da criatividade jurídica. Naquela ocasião, quando a súmula vinculante era apenas uma ameaça no horizonte, protestou contra o ressurgimento dos crimes de hermenêutica. Ao se tornar vinculante, mais do que estabelecer um crime desta espécie, as súmulas sequer permitem que ele seja cometido.

Marco Alexandre de Souza Serra é mestre em Direito das Relações Sociais pela
Universidade Federal do Paraná, é advogado e professor universitário. maserra@wnet.com.br

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