No dia 27 de abril de 2005, a Segunda Seção do STJ editou a Súmula n.º 309, com o seguinte enunciado: ?O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores à citação e as que vencerem no curso do processo?.
Tal entendimento vem sendo há muito consolidado, principalmente levando-se em consideração a gravidade da pena de prisão para o devedor de alimentos.
A prisão civil do alimentante, exceção expressa inserta no artigo 5.º, inciso LXVII, da Constituição Federal, e também no Pacto de San José da Costa Rica, em seu artigo 7.º, n.º 7, deve ser deferida pelo juízo como medida extrema visando o cumprimento do débito alimentar.
Antes da prisão, existem outros meios coercitivos e sub-rogatórios, como a implantação em folha de pagamento do devedor da dívida alimentar.
As questões discutidas pela doutrina a respeito da prisão do devedor de alimentos cingem-se, principalmente, a dois aspectos: a) quanto à origem do débito alimentar; e b) quanto ao período relativamente ao qual permanece o caráter alimentar.
Em relação ao primeiro aspecto, a grande maioria da doutrina afirma que somente quando os alimentos forem devidos em razão de vínculos familiares é que estaria autorizada a prisão. Excluem-se, portanto, os alimentos devidos em razão de indenização por ato ilícito.
Não obstante este entendimento já consolidado, importante ressaltar que a Constituição Federal não restringe a hipótese aos alimentos devidos em decorrência de relações familiares. O que a Constituição Federal protege é a vida do cidadão que depende da prestação alimentar para sobreviver dignamente.
O dever de sustento decorre primariamente das relações familiares, mas, se por ato ilícito, o cidadão fica subtraído do poder de suprir seu próprio sustento, não é crível que não possa fazer uso dos meios processuais e legais efetivos para proteger seu direito.
Tanto como os alimentos devidos em razão de relação familiar, os alimentos indenizatórios porque decorrentes da responsabilidade civil não perdem o caráter de urgência inadiável e de adimplemento imediato. Não há diferença entre a necessidade alimentar do filho e a necessidade alimentar do inválido, que assim ficou em decorrência de ato ilícito.
Portanto, a conclusão a que se chega é que o rito estabelecido no artigo 733, do CPC, também pode ser utilizado para cobrança de alimentos devidos em decorrência de responsabilidade civil. Há uma lacuna na lei com relação ao prazo desta prisão, a qual poderia ser solucionada aplicando-se analogicamente a Lei de alimentos que, em seu artigo 19, limita entre um e três meses.
Ocorre que esta ação será menos utilizada pelo credor de alimentos indenizatórios porque existe na lei diversos meios também eficazes e prévios, como a constituição de capital e inclusão em folha de pagamento de empresa.
Mas estas possibilidades não excluem a medida processual prevista no artigo 733 do CPC.
Quanto ao segundo aspecto, isto é, limite temporal de três meses para que se possa adotar o rito do artigo 733 do CPC, que possibilita a prisão do devedor cujo entendimento foi consolidado através da Súmula n. 309 do STJ, também há que ser visto com algumas ressalvas.
Não se pretende negar as razões da quase unanimidade da doutrina ao caracterizar como alimentos atuais os devidos nos últimos três meses antes da citação, e como pretéritos os alimentos anteriores. O critério diferenciador é justamente a necessidade do alimentado. Ou seja, se sobreviveu sem os alimentos pelo período maior de três meses, significa que deles não necessita para sobreviver, transformando a dívida alimentar em dívida pecuniária a ser exigida mediante o rito previsto no artigo 732 do CPC.
Do que se depreende da análise dos acórdãos que deram origem à Súmula 309, não há propriamente uma reflexão sobre o motivo de somente ser possível o decreto de prisão contra o devedor das três últimas parcelas de alimentos. O entendimento decorre de um critério já há muito consolidado, que é aplicado, diga-se, sem muita reflexão a respeito.
Todavia, é esclarecedor o acórdão proferido no Habeas Corpus n.º 23.168/SP, cujo relator, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, assim se manifestou; ?Nos termos da jurisprudência que veio a firmar-se nesta Corte, apenas na execução de dívida alimentar atual, quando necessária à preservação da sobrevivência do alimentado, se mostra recomendável a cominação de pena de prisão ao devedor. Em outras palavras, a dívida pretérita, sem capacidade de assegurar no presente a subsistência do alimentando, mostra-se insusceptível de embasar decreto de prisão?.
Mas a realidade social do Estado Brasileiro, em muitos casos, não permite a aplicação imediata do entendimento consolidado na súmula 309, sob pena de se caracterizar flagrante injustiça ao jurisdicionado.
Com efeito, não é incorreto o pensamento de que se o credor de alimentos não procurou o Judiciário para fazer valer sua pretensão no prazo de três meses é porque pode sobreviver sem eles, havendo cisão entre o valor cobrado mediante o rito do artigo 733 e o cobrado mediante o rito do artigo 732, ambos do CPC.
Por outro lado, a doutrina e a jurisprudência não podem se furtar à realidade nacional da população que depende das defensorias públicas dos Estados ou dos escritórios modelos dos cursos de Direito para que tenham acesso à justiça.
A execução de alimentos é ação que necessita da presença de advogado, com sua capacidade postulatória. Não há o mesmo tratamento dos juizados especiais, nos quais se dispensa a presença do advogado até o limite de vinte salários mínimos para os Juizados Estaduais (art. 9.º, caput, da lei n.º 9099/95) ou se dispensa de forma geral para os Juizados Federais (art. 10 da lei. N.º 10.259/2001).
Diante disso, o serviço prestado pelas defensorias públicas e pelas universidades é de importância ímpar para o acesso à justiça. Ocorre, entretanto, que a demanda social é geralmente maior do que a capacidade de atendimento das defensorias o que, em muitos casos, posterga o atendimento inicial do cidadão e também o ajuizamento da demanda executiva.
Vale lembrar que as entidades assistenciais somente atendem pessoas economicamente carentes, segundo critérios que estabelecem, o que implica na necessidade do cidadão passar por triagem de situação econômica geralmente realizada por profissionais da área da assistência social.
São procedimentos necessários, mas demorados, que atrasam a efetivação do direito do cidadão em juízo.
O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, preocupado com essa situação, lançou em março de 2003 o projeto ?Justiça nos Bairros?, que visa a descentralização do atendimento realizado pelas varas de família da capital e a ampliação do acesso à justiça do cidadão nas causas de direito de família.
Grosso modo, o projeto trabalha em parceria com as prefeituras, empresas privadas e universidades, visando compor as equipes multidisciplinares compostas por assistentes sociais, psicólogos e advogados, bem como estudantes de psicologia e direito e seus respectivos professores de prática e estágio. Conta com a colaboração indispensável do Ministério Público e das defensorias públicas.
No dia em que acontece, o projeto coloca à disposição da população economicamente carente advogados, juízes e promotores, que possibilitam a solução da pendenga familiar de imediato. São atendidos casos de separação judicial, conversão de separação judicial em divórcio, divórcio, reconhecimento de união estável, alimentos, revisional de alimentos, guarda e responsabilidade, reconhecimento de paternidade e maternidade, regularização de visitas, suprimento de idade para casamento e diversos outros casos de direito de família. Além dos requisitos legais para cada caso em específico, necessita-se do consenso entre as partes.
Não há espaço, portanto, para as ações litigiosas o que implica em adequação do cidadão ao sistema ortodoxo de atendimento pelas defensorias e universidades.
Outro aspecto relevante é a ausência de patrimônio apto a satisfazer a execução de alimentos que segue o rito do artigo 732, do CPC. Para que tal execução seja frutífera, mister que o alimentante tenha patrimônio. Nas camadas mais pobres da população, geralmente as execuções se tornam infrutíferas e o alimentado se ressente não somente da falta dos alimentos, indispensáveis para sua sobrevivência digna, como também da falta de proteção jurídica adequada do Estado.
Da mesma forma, deve-se contabilizar o gasto do Estado com o processo fadado ao insucesso.
Sendo assim, embora a Súmula 309 do STJ tenha se originado na consolidação do entendimento da comunidade jurídica como um todo, é imprescindível que a discussão sobre a facilitação do acesso à justiça do credor de alimentos seja incluída em pauta, para que restem bem ponderados o direito à liberdade do alimentante com o direito à vida e à tutela jurisdicional do Estado ao alimentado.
A população economicamente desfavorecida deve ser objeto de maior atenção do Poder Judiciário e da comunidade jurídica como um todo, para que seus direitos fundamentais sejam melhor tutelados pelo Estado.
Helena de Toledo Coelho Gonçalves é advogada no Paraná, professora de Direito Processual Civil da PUCPR, mestre em Direito Econômico e Social pela PUCPR e doutoranda em Direito Processual Civil pela PUCSP.