A sombra de Che

A mitológica figura do líder revolucionário argentino Ernesto Che Guevara pairou soberana no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Engana-se, porém, quem pensa que Che esteve representado apenas pelo espírito libertário característico da quase totalidade dos participantes do encontro. Ou do gigantesco painel com a sua emblemática imagem, instalado em um dos auditórios do FSM.

O líder de Sierra Maestra também marcou presença no encontro de forma bem mais concreta. Aleyda Guevara (ou Aleydita), sua filha, esteve em Porto Alegre para reafirmar a disposição do socialismo autêntico de modificar as bases sócio-políticas-econômicas das nações, longe da lógica excludente que marca o neoliberalismo.

Pediatra em Havana e uma das principais defensoras da Revolução Cubana, Aleydita mandou um recado aos libertários de todo o planeta, e a quem quisesse entendê-la. Falando sobre nossa frágil noção de liberdade, disse que só pode se considerar “livre” quem consegue, além de apresentar seus problemas, obter resposta para eles. Ou seja: só é livre quem é ouvido e, além disso, consegue ter voz ativa na elaboração das políticas públicas voltadas ao interesse coletivo.

O recado é oportuno e cai bem aos participantes do Fórum Econômico Mundial, em Davos, inclusive à plêiade governamental comandada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Porque, se é de extrema importância ser ouvido e respeitado por todos os estadistas do planeta, como foi o presidente da República, seu pronunciamento só faz sentido se for acompanhado de uma mudança profunda das relações de poder entre as nações desenvolvidas e subdesenvolvidas do mundo. Em outras palavras: se o Terceiro Mundo deixar de ter o papel secundário que sempre teve na definição da agenda político-econômica internacional, mesmo na ONU. O resto é conversa mole.

Naturalmente, a mesma regra se aplica ao Brasil. Ouvir a sociedade civil sem acatar suas posições, como fez o ministro José Dirceu (Casa Civil) ao anunciar a manutenção das taxas de juros elevadas por tempo indeterminado, soa como canhestra contradição. Lula se elegeu, entre outras coisas, criticando a política de juros de Fernando Henrique Cardoso e defendendo o desenvolvimento como medicamento contra a crise. Esperava-se, agora, que seu governo fizesse o prometido nesse terreno. Não é o que, ao menos por enquanto, está acontecendo.

Não é fácil exercer o poder, bem o sabemos. Mais ainda, porém, quando não se guarda a devida identificação entre o que se fala e o que se faz. De um governo eleito democraticamente, não se esperava nenhuma ação revolucionária ou precipitada em Davos, como os Confeiteiros sem Fronteiras fizeram em Porto Alegre, ao lançar uma torta no rosto de José Genoíno. De Lula, espera-se, porém, mais do que um empolado discurso.

Seu governo tem o dever de cobrar com mais vigor das nações desenvolvidas uma mudança do tratamento dispensando às nações pobres do planeta. E, sobretudo, de aplicar esse mesmo receituário no Brasil. Caso contrário, mais do que um emblema da revolução socialista, a figura emblemática de Che Guevara vai pairar sobre o governo Lula como uma sombra forte, sob o sol escaldante. Um fantasma a lembrar a Lula e seus ministros que ainda temos muito a caminhar em direção à construção da sociedade mais justa e fraterna imaginada por ele.

Aurélio Munhoz é editor-adjunto de Política em O Estado e mestrando em Sociologia Política pela UFPR.

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