O estudo sobre “A solidariedade e a economia solidária: uma perspectiva sociojurídica” é de autoria do dr. Sandro Lunard Nicoladeli, dissertação para obtenção do título de mestre na área de concentração de Direito Cooperativo e Cidadania do programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. A orientação coube ao professor Ricardo Marcelo Fonseca que, juntamente com o coordenador do curso, o professor José Antônio Peres Gediel, e a profa. Rosinha Machado Carrion, da UFRS, compuseram a banca examinadora da tese no dia primeiro de março. O programa sobre Direito Cooperativo e Cidadania é pioneiro no país e a primeira turma foi selecionada em março de 2001, seguindo-se outras até o ano em curso. O dr. Sandro Lunard Nicoladeli também é coordenador do Programa Estadual de Economia Solidária da Secretaria do Trabalho, Emprego e Promoção Social do governo do Paraná. Dada a importância do tema, face ao interesse que os estudos sobre cooperativismo vêm despertando diante da atual crise socioeconômica e do desemprego em larga escala, assim como pelo ineditismo na abordagem teórico-prática, solicitamos ao autor uma breve síntese introdutória da tese, adiantando o texto que será apresentado na íntegra em livro a ser editado. Eis o resumo encaminhado pelo dr. Sandro Lunard Nicoladeli:
“O presente estudo teve por objetivo promover o resgate das experiências associativas e mutualísticas dos trabalhadores iniciados na metade final da Revolução Industrial, como reação às intensivas formas exploratórias de trabalho que estavam submetidos. Essa reação consubstanciou-se em duas formas organizativas: os sindicatos e as co-operativas. Mais recentemente demonstrou-se o resgate crescente e a participação de novas formas organizativas do espaço produtivo denominadas de Economia Solidária, como sendo uma retomada das experiências vivenciadas na Revolução Industrial. O trabalho propõe um levantamento histórico-conceitual do cooperativismo, a partir da idéias de Robert Owen, compilando as experiências difundidas pela Europa. Os princípios que dirigiram a iniciativa cooperativista e as mudanças trazidas pelas transformações político-sociais, que acabaram por originar inúmeras derivações teóricas e práticas da economia solidária, citando alguns exemplos e problematizando-os.
Nos países capitalistas centrais, o modelo do cooperativismo e da economia solidária, desenvolveu-se como uma alternativa ao modo capitalista de produção, buscando conjugar uma forma de inserção econômica, a partir de princípios éticos diferenciados, que primam pelo resultado econômico do empreendimento cooperativo, conjugado a investimentos sociais na educação de seus sócios, na difusão da cultura cooperativista e no reforço da própria cadeia cooperativa, mas, principalmente, superando o princípio egoístico formador do capitalismo, pelo princípio filosófico fundamental que é a cooperação, melhor dizendo, a solidariedade. Para melhor análise do fenômeno cooperativo, tornou-se necessário revisitar e problematizar a categoria solidariedade como elemento coesionador fundamental das sociedades e destas unidades produtivas. A solidariedade foi situada historicamente a partir da Revolução Francesa no bojo do tripé revolucionário, como valor subjacente à ‘fraternidade’. As reflexões da revolução levaram a construções teóricas na sociologia em Durkheim e nas ciências jurídicas em Duguit. Ainda, as concepções de solidariedade, foram cotejadas na perspectiva socialista, social-democrata e contemporaneamente pelos autores Pedro Demo, Hugo Assman e Richard Rorty. Entretanto, contemporaneamente, com o advento da globalização econômica, consolidou-se o ideário do neoliberalismo econômico. Aliado a esse quadro ocorreu a divisão internacional do trabalho com a desestruturação do espaço produtivo, decorrente da incessante mecanização e informatização dos sistemas de produção que romperam com o sistema de assalariamento. O declínio da sociedade salarial jogou no desemprego e na informalidade milhões de trabalhadores que, em razão dessa crise, buscaram alternativas de geração de trabalho e renda. A constituição de alternativas econômicas e geração de renda por meio da economia informal: catação de lixo, comércio ambulante, formação de cooperativas de produção e trabalho, atividades comunitárias produtivas, e até o comando de organizações produtivas formais a exemplo dos empreendimentos capitalistas falidos, em que trabalhadores organizados, geralmente, no sistema de autogestão, resistem a quebra da empresa, buscando a manutenção da atividade econômica do empreendimento e, por conseguinte, de seus postos de trabalho.
A partir das experiências vivenciadas pelos trabalhadores surgiram os grupos de apoio e as teorizações formuladas por diversos autores. Essas experiências passaram a ser denominadas socioeconomia, economia popular, economia da comunhão e outras, nas quais os trabalhadores, movidos por sentimentos sobrevivência, organizaram-se segundo valores mutualísticos e solidários, de forma a assegurar sua ocupação e renda.
As análises histórico-analítica, fundamentos e tipologias da solidariedade e da economia solidária evoluem para o necessário aparecimento de expressões concretas de agências de fomento e de políticas públicas neste trabalho demonstradas, faz-se então, imprescindível, buscar nas reflexões de Boaventura de Sousa Santos, um apanhado geral do estudo realizado, partindo da noção de globalização contra-hegemônica, sua proposição teórica de transição paradigmática a partir de práticas emancipatórias no campo da produção e do mercado que a Economia solidária oportuniza.
Das constatações desse trabalho é razoável deduzir-se que as formas teóricas apresentadas pela economia solidária, coadunam-se intimamente com o pensamento do autor, pois as derivações atuais do cooperativismo e da economia solidária (economia popular, economia do trabalho, socioeconomia solidária, economia da comunhão e suas respectivas agências de fomento – Anteag, ADS, ITCP dentre outros) nada mais são do que construções teóricas do conhecimento-emancipação, aproximadas do conhecimento técnico instrumental, que buscam romper com as categorias assentadas no paradigma-regulação do conceito de trabalho formal, para a construção de um novo paradigma emergente das relações de trabalho, para além do assalariamento, calcadas nos valores da solidariedade.
A análise jurídico-constitucional do trabalho humano e do cooperativismo como valores fundantes da República constituem-se como pressupostos da construção de um marco jurídico para a economia solidária, sem perder de vista as experiências internacionais: a constitucional portuguesa; a reprodução dos debates e a edição da Recomendação 193 da Organização Internacional do Trabalho que recolocaram na pauta internacional a importância do cooperativismo como mola propulsora do desenvolvimento de todos os países. Essa atualidade nos debates da OIT revela a contemporaneidade internacional do tema e sua articulação com a crescente luta dos trabalhadores informais superarem o estágio da exclusão social a partir de iniciativas coletivamente organizadas sob a égide da economia solidária no Brasil.
Ainda, no resgate dos princípios fundadores do constitucionalismo português que ansiava ser o cooperativismo a forma de organização da atividade econômica da sociedade pós-Revolução dos Cravos. As influências do texto português na expressão cooperativa constitucional pátria são demonstradas quando analisadas as categorias solidariedade e trabalho como princípios fundantes da República Federativa Brasileira, e sua expressão sócio-jurídica na ordem econômica constitucional à luz do estímulo ao associativismo e ao cooperativismo. Quanto à implementação de um marco jurídico adequado à economia solidária, revelaram-se duas concepções distintas: a primeira a de assegurar os direitos sociais constitucionais dos trabalhadores, em sentido contrário, a tônica fluente das reivindicações do movimento da economia solidária, no plano jurídico, direciona-se no sentido da postulação de um ‘marco legal’ constituído predominantemente nas áreas tributária, de relações com o Estado e de formalização dos empreendimentos. Tanto é verdade que os empreendimentos da economia solidária carecem de instrumentos regulatórios eficazes, aliás a organização econômica autogerida pelos trabalhadores, individual ou coletiva, não tem o reconhecimento do sistema paradigma-regulatório estatal (ex. ambulantes, coletadores de material reciclável, organizações produtivas comunitárias).
Necessita, portanto, dialogar com o sistema estatal regulatório, bem como se apropriar das tecnologias produzidas pela sociedade, com a finalidade de viabilizar a manutenção de seus empreendimentos. Além do que o reconhecimento estatal destas práticas nas políticas públicas de desenvolvimento econômico social, mas sem retirar-lhes o mérito do ineditismo (Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo e a recente criação no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, da SENAES).
No espaço da produção, a proposta de Santos é a da produção eco-socialista, tendo como base desse sistema econômico, as cooperativas autogeridas, inseridas no contexto desse novo senso comum emancipatório, garantidor da co-existência de dois sistemas econômicos distintos: o público, o capitalista e aquele representado pelas unidades de produção cooperativas. Essa proposição tem como base as experiências associativas, comunitárias e cooperativas, indutoras de novas sociabilidades reprodutoras de valores centrados no trabalho, na solidariedade como princípios informadores de uma nova sociedade.
Neste trabalho, buscou-se centrar nas análises de viabilidade econômica e potencialidade emancipatória dos empreendimentos organizados a partir de padrões éticos da igualdade, da solidariedade e da proteção do ecossistema. A análise das formas alternativas de produção, a exemplo das empresas de autogestão, criam segundo Boaventura ‘formas de sociabilidade solidárias baseadas no trabalho colaborativo e na participação democrática na tomada de decisões sobre as empresas’.
Em suma, o trabalho procurou ser instrumento de busca e catalogação das experiências socio produtivas denominadas Economia Solidária que tem na solidariedade seu principal valor filosófico organizativo, sugerido como referencial importante na transição paradigmática, proposta por Boaventura Santos. Sobretudo quando propõe o conhecimento-emancipação como superação do conhecimento-regulação, levando-se em conta as contradições existentes no sistema, mas ressaltando os valores da solidariedade, caracterizados por uma ética da alteridade que perpassaria todas as esferas da sociedade, especialmente nos campos da produção e do mercado e, de maneira mais detalhada, no campo da produção, são elencadas algumas alternativas de experiências concretas experimentadas por comunidades do Terceiro Mundo e suas respectivas agências de fomento da sociedade civil ou das esferas governamentais sensibilizadas para a problemática”.
