A síndrome do Papai Noel

Vivemos num País estranho, onde coisas singulares acontecem, onde tudo pode acontecer. Para a platéia, fala-se que vivemos numa democracia, que há justiça social e que o nosso futuro é promissor. A propaganda procura imbuir o povo a votar, propalando que os nossos governantes são sérios, competentes e honestos, que a vida no Brasil não tem igual em nenhum outro lugar do mundo, que o nosso concidadão tem tudo o que precisa e almeja e mais alguma coisa.

Essas assertivas, todavia, não têm amparo na nossa realidade e o brasileiro enfrenta um dos países mais cruéis do mundo, pois, trocando em miúdos, a pretensa democracia não existe e os que estão no poder procuram cuidar exclusivamente de seus próprios interesses e dos grupos que os apóiam, sejam lá quais forem. Ou seja, estamos diante de uma grosseira mistificação, para manter tudo como está, sem possibilidade de alteração e de busca de uma vida melhor.

À beira do caos, o País patina e afunda, sem qualquer perspectiva de sairmos desta crise que se agrava a cada dia que passa, com aumento da violência, com a paralisia completa das instituições, com a classe política mergulhada em negociatas, sem perspectiva de qualquer melhora para o futuro. Em suma, o alarme está soando, o navio está prestes a afundar e o que estamos esperando?

Neste artigo, começaremos uma série para tentar decodificar a crise.

Desde criança somos adestrados para receber, no Natal, um presente de um cidadão que todos conhecem como Papai Noel, mas que não faz parte da família de ninguém, que não tem qualquer espécie de compromisso com quem quer que seja, mas que por pura bondade costuma atender aos pedidos de todas as crianças brasileiras.

Basta apenas fazer um pedido do presente que se deseja receber, colocar o bilhetinho num sapatinho e o simpático velhote nos atenderá, sem mais nem menos, sem qualquer exigência. Basta desejar e pedir.

Em princípio, apenas uma fantasia infantil, mas tem um detalhe importante: a criança que assim agiu, quando adulto acreditará que o mesmo princípio continua valendo: que basta ter um desejo e externá-lo, para que, numa determinada hora, ele seja atendido.

Essa fantasia entranhou-se de tal forma na vida brasileira até converter-se numa grave doença. Assim, basta lembrar que no tempo da ditadura militar, as patentes convidadas para ocupar a presidência da República aceitavam o cargo com a maior naturalidade, como se tivessem nascidas para isso, desde sempre preparadas para tão alta e relevante missão. Nunca ocorreu a qualquer desses ungidos pela sorte se dar falto de conhecimento e aptidão suficientes para o cargo, pois não é da nossa natureza desdenhar poder e benesses. E assim tivemos uma fileira de convidados pelos donos do poder para figurarem como supremos mandatários, verdadeiros fantoches, sem vida nem luz próprias. Na momento atual, de farsa democrática, nada mudou: o poder econômico alça à curul presidencial e todos os cargos de poder indivíduos que lhes são dóceis e submissos, os quais têm suas biografias falsificadas e maquiadas por marqueteiros hábeis em inventar personalidades que nunca existiram, criando na imensa massa dos enganados e desvalidos uma profunda depressão e desilusão, que só tende a se agravar.

E essa pratica se dissemina por toda a sociedade e instituições, que ficam igualmente contaminadas. Para exemplificar, tomemos a situação do Supremo Tribunal Federal, em que os cargos são preenchidos a dedo pelo Chefe da Nação, ele próprio beneficiário da síndrome do Papai Noel, pois sonhou que um dia seria presidente e foi premiado pela oligarquia dominante, que viu nele um instrumento de sua sanha de poder e de glória, após assegurar-se de que o candidato estava adrede disposto a assinar, sem discutir, tudo o que fosse colocado à sua frente.

Originalmente, o STF deveria ser o coroamento de carreiras e de vidas totalmente dedicadas ao direito e à Justiça, o órgão máximo do Judiciário brasileiro, mas, na prática, nada disso ocorre, ou pode ocorrer como exceção, não como regra. Não se chega ao STF por méritos próprios, mas por total e absoluta interferência política, critério que exclui sumariamente figuras proeminentes do direito pátrio, entre juízes dedicados e experientes, professores renomados, com obras extraordinárias no mercado, vasto conhecimento e sabedoria jurídicos, preteridos por eminências obscuras, contempladas por critérios exclusivamente políticos.

Esse fenômeno é recorrente em nossa vida pública, onde se vive um realismo mágico, dependente de fé e bajulação, pouco importando o que possa acontecer com o País, que fica à mercê de pessoas pouco ou nada qualificadas, com danos severos para aqueles que poderiam dar contribuição muito mais edificante para os destinos nacionais.

Porém, um País que relega o mérito das pessoas, desdenha a competência e pune a inteligência, não tem futuro: está condenado ao ostracismo, ao definhamento e à morte, projeto que ninguém em sã consciência pode aceitar para o Brasil, de modo que há que lutar para que tal sistema seja revertido e transformado, para se ter uma estrutura moderna e decente.

Vale lembrar que o que acontece na Suprema Corte repete-se em outros Tribunais federais, onde reinam os mesmos critérios, com os ungidos eternamente gratos e submissos aos detentores do poder, espetáculo deprimente assistido de forma complacente e autista pelos demais Tribunais, pela Ordem dos Advogados do Brasil, pelo Ministério Público, Institutos e Associações de Advogados.

Vê-se que essa crise chegou ao paroxismo e, por isso, está mais do que na hora de impormos critérios éticos e técnicos, dando-se um fim a essa síndrome nefasta e infame, banindo-a da vida pública do País.

Que cada um estude, trabalhe e se dedique para chegar às funções que desejar, mas com ética, independência, competência e amor ao País e ao povo brasileiro. E que, ao ser convocado pelos donos do poder, faça exame de consciência para ver ser realmente está em condições adequadas para exercer a função oferecida. Sem independência e liberdade de ação, se o sentimento de gratidão for maior do que o compromisso de bem exercer o cargo, é o caso de continuar onde está, para o bem de todos e felicidade geral da nação.

Dagoberto Loureiro é juiz federal aposentado.

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