Não pelo tipo de colocação que desempregados buscam – o de gari no Rio de Janeiro, mas pelo salário pago, quer ofensa à cidadania maior que essa?

Das primeiras vezes, era novidade. E até engraçado: um presidente da República falando a linguagem do povo, dizendo o que lhe vinha à cabeça e bastante alheio à cerimônia do cargo. Seu conhecido sotaque lhe emprestava a credibilidade que, por vezes, o palavreado não conseguia. A evocação dos dias pobres no Nordeste e em São Paulo, de operário, de sindicalista, depois de figura andante País afora, tudo isso teve seu tempo e glória. Está consignado. O discurso do presidente foi perdendo o brilho pela repetição da linguagem; a bravata sapecou-lhe a credibilidade, o desemprego cresceu, algumas propostas de reforma contrariam o discurso, o fantasma da ofensa surgiu no horizonte. Teve que pedir desculpas.

Não é a primeira vez. E, embora seja humano, não é louvável que um presidente da República venha a público todos os dias para explicar ou pedir desculpas do que disse no dia anterior. “Aprendi desde pequeno, com minha mãe: quando um não quer, dois não brigam” – disse Luiz Inácio Lula da Silva, ao negar sua intenção de desafiar poderes, excetuado o divino. Naquele discurso que assegura ter feito para uma freirinha, dia anterior (mas transmitido pelas câmeras e microfones), afirmara com todas as letras, e em tom desafiador, que “não tem chuva, não tem geada, não tem terremoto, não tem cara feia, não tem um Congresso Nacional, não tem um Poder Judiciário – só Deus será capaz de impedir que a gente faça esse País ocupar o lugar de destaque que ele nunca deveria ter deixado de ocupar”.

Trator ou motoniveladora (como dizia Jânio Quadros), louve-se a obstinação do presidente. Coisas do gênero ele já havia dito antes. Mas em outro contexto e sem os possíveis endereços dessa última oração. Cada vez mais, é preciso escolher as palavras. Agora, por exemplo, o Executivo faz um jogo-de-braço com o Judiciário por causa da reforma da Previdência. Os juízes querem manter o que no Planalto e alhures é considerado um privilégio. Falar de geadas e terremotos, não tem conseqüência. Referir o Judiciário nesses obstáculos diários do exercício da Presidência é temerário. O Legislativo, também. Pior de tudo é que isso desgasta. E desvia a rota da luta.

Nesses mesmos dias de adrenalina alta em função de um discurso improvisado, em apenas 48 horas mais de trinta mil pessoas se inscreviam como candidatos a uma vaga de gari no Rio de Janeiro. Não pelo tipo de colocação que buscam, mas pelo salário pago, quer ofensa à cidadania maior que essa? A fila do (des)emprego está crescendo dia a dia no salve-se quem puder da realidade brasileira. Não é isso, entretanto, que parece preocupar o Planalto. Nem os arredores, mais escandalizados com as bravatas presidenciais que com nossa enorme chaga social. Uma chaga que tem a ver com os que a ela fazem ouvidos moucos.

Pensando bem, e a despeito da necessária harmonia entre os poderes (e por qual motivo não entre os seres vivos?), Lula tem outras coisas de que se retratar. Mais importantes talvez que esse já repetido juramento de mudanças, chova pregos ou vente canivetes, que os brasileiros continuam a esperar. Embora ainda haja quem advogue o curto período em socorro de seu governo, é inegável que a situação econômica (e com ela aquela social) piora a olhos vistos. E para isso não tem conselho da mamãe que resolva. Nem resolvem pré-montados pedidos de explicações ou desculpas. É preciso governar.

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