Fernando Wolff Bodziak

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A responsabilidade do fiador nos contratos de locação tem sido alvo de muitos questionamentos e controvérsias, com passos e contrapassos da doutrina e da jurisprudência.

Sobre o tema, vinha prevalecendo o entendimento, tanto em sede doutrinária quanto em sede jurisprudencial, de que na hipótese de o contrato de locação haver sido firmado por tempo determinado e sendo garantido por contrato de fiança, acabava a responsabilidade do fiador quando do término do prazo de vigência da avença.

Em caso de prorrogação tácita do contrato de locação, que passava a viger por tempo indeterminado (artigos 46, § 1.º, e 47 da Lei do Inquilinato), entendia-se não existir responsabilidade do fiador por obrigações resultantes de aditamento que não contou com sua anuência, em virtude de interpretação restritiva e benéfica conferida à garantia fidejussória da fiança, de acordo com o enunciado da Súmula 214 do STJ(1), não assumindo relevância cláusula estendendo a obrigação fidejussória até a entrega das chaves do imóvel objeto da locação.

Vale dizer, por força do entendimento até então prevalecente, inclusive no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, respondia o fiador somente pelos encargos decorrentes do contrato de locação, pelo prazo originariamente pactuado, a despeito da existência de cláusula em sentido contrário e independente da manifestação de vontade das partes (locador, locatário e fiador).

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Desconsiderando os termos do contrato, diversas decisões proferidas com apoio na Súmula 214 do STJ, culminavam por extinguir a garantia e exonerar da responsabilidade o fiador, de maneira indistinta, isto é, tivesse sido o contrato prorrogado ou aditado, sem diferenciar as expressões ?prorrogação?(2) e ?aditamento?(3), em flagrante equívoco de interpretação.

Diante das inúmeras incertezas e dificuldades vivenciadas pelos contratantes e pelo setor imobiliário, decorrentes dessa orientação, em boa hora a matéria está a merecer outro tratamento, em sentido diametralmente oposto, na medida em que, revendo posicionamento anterior, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do EREsp 566.633/CE, firmou entendimento de que continuam os fiadores responsáveis pelos débitos locatícios posteriores à prorrogação legal do contrato, se anuíram expressamente a essa possibilidade e não se exoneraram nas formas dos artigos 1.500 do CC/16 ou 835 do CC/02, a depender da época que firmaram a avença.

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Sem dúvida alguma, a mudança de entendimento revela evolução da jurisprudência e procura recolocar as coisas no seu devido prumo, porque a Súmula 214 do STJ, na realidade, não tem incidência em muitas situações, uma vez que cuida apenas de aditamento sem anuência do fiador, isto é, quando há alguma alteração no ajuste, mas não aborda a prorrogação tácita do contrato, hipótese em que não há qualquer mudança no pacto original, e por isso, não pega desprevenido o fiador se este manifestou vontade expressa de garantir o contrato de locação até a efetiva entrega do imóvel pelo locatário.

Aliás, é esse o sentido da regra inserta no art. 39, da Lei n.º 8.245/91(4), norma especial que continua a ter inteira aplicabilidade aos casos de locação de imóveis urbanos, por força do disposto no art. 2.036 do CC/02(5), e deve se compatibilizar com o instituto da fiança.

Da fundamentação expendida no EREsp n.º 566.633/CE, se extraem algumas importantes ponderações: ?A fiança é a promessa, feita por uma ou mais pessoas, de satisfazer a obrigação de um devedor, se este não a cumprir, assegurando ao credor o seu efetivo cumprimento. Esse tipo de garantia tem como características a acessoriedade, a unilateralidade, a gratuidade e a subsidiariedade. Ante suas características, e nos termos do Código Civil, tanto o revogado (art. 1.483) quanto o novo (art. 819), o contrato de fiança não admite interpretação extensiva. Nestes termos, pode-se extrair que a fiança: a) é um contrato celebrado entre credor e fiador; b) é uma obrigação acessória à principal; c) pode ser estipulado em contrato diverso do garantido, como também inserido em uma de suas cláusulas, mas sem perder a sua acessoriedade; d) não comporta interpretação extensiva, logo o fiador só responderá pelo que estiver expresso no instrumento de fiança, e, e) extingue-se pela expiração do prazo determinado para sua vigência; ou, sendo por prazo indeterminado, quando assim convier ao fiador (art. 1.500 do CC revogado e 835 do novo CC); ou quando da extinção do contrato principal. Ao transportar este instituto para a Lei de Locação, imprescindível que os artigos do referido Diploma Legal se adaptem aos princípios norteadores da fiança. Ainda que o artigo 39 da Lei n.º 8.245/91 determine que ?Salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel?, tal regramento deve se compatibilizar com o instituto da fiança, se esta for a garantia prestada. Assim, a cada contrato de fiança firmado, diferentes conseqüências serão produzidas aos encargos do fiador. Dessa forma, há que se fazer algumas considerações: 1.º) se os fiadores concordaram em garantir a locação, tão-somente, até o termo final do contrato locativo (prazo certo), não responderão pelos débitos advindos da sua prorrogação para prazo indeterminado; 2.º) se os fiadores concordaram em garantir a locação até o termo final do contrato locativo (prazo certo) e expressamente anuíram em estender a fiança até a entrega do imóvel nos casos de prorrogação do contrato locativo para prazo indeterminado, responderão pelos débitos daí advindos. Entretanto, na segunda hipótese, ante o caráter gratuito da fiança e a indefinição temporal para a entrega do imóvel, eis que depende exclusivamente da vontade do locatário, a garantia deve ser entendida como sendo por prazo indeterminado, a possibilitar ao fiador a sua exoneração, nos termos do artigo 1.500 do Código Civil revogado, se o contrato tiver sido celebrado na sua vigência, ou do artigo 835 do Novo Código Civil, se o contrato foi acordado após a sua entrada em vigor. Nas lições de Walmir de Arruda Miranda Carneiro: ?A fiança estipulada para durar até a entrega das chaves do imóvel ao locador é garantia estabelecida sem limitação de tempo, coisa que permite ao fiador exonerar-se, a partir do término do prazo contratual, nos termos do art. 1.500 do Código Civil, salvo se renunciou a esse direito. Conforme acertadamente pondera LAURO LAERTE DE OLIVEIRA ?A fiança prestada no contrato de locação até a entrega das chaves é inexoravelmente sem limitação de tempo. Nem se argumente que a data da desocupação do imóvel é o termo final. Este é indefinido. Como a locação pode durar um ano, pode durar cinqüenta anos. Daí preconizarmos a possibilidade de exoneração do fiador na locação prorrogada por tempo indeterminado, em que houver cláusula de responsabilidade até a entrega das chaves. Vale dizer que somente após a prorrogação sem limitação de tempo é dado ao fiador pleitear a exoneração e nunca no período inicial de locação por prazo certo? (ob. cit., p. 77)? (CARNEIRO, Walmir de Arruda Miranda; ?Anotações à Lei do Inquilinato?; São Paulo: ed. RT; 2000?)?.

Assim, na hipótese de existir expressa disposição contratual prevendo que a responsabilidade do fiador se estende em caso de prorrogação do contrato por tempo indeterminado, até a efetiva devolução das chaves, o garante tem possibilidade de não permanecer vinculado de maneira perpétua ao contrato e se exonerar do encargo, para isso podendo se valer do que dispõem os artigos 1.500 do CC/16(6) ou 835 do CC/02(7), aplicando-se um ou outro dispositivo, conforme a época da celebração da avença, com responsabilidade pelos débitos existentes até a data da liberação.

E se o locatário, a partir da exoneração do fiador, não providenciar outro para ocupar o lugar daquele que se retirou, em face de exigência do locador realizada com amparo no artigo 40, inciso IV, da Lei do Inquilinato(8), ficará sujeito às penalidades decorrentes de infração contratual e poderá sofrer ação de despejo, por força do que estabelecem os artigos 5.º(9) e 9.º, inciso II(10), da citada lei, como medida de restabelecimento do equilíbrio de tratamento entre o locador, que não fica desguarnecido pela saída do fiador, porque tem meios de retomar seu imóvel em virtude do enfraquecimento do contrato, diminuição ou desaparecimento da garantia fidejussória até então existente, e o fiador que não permanece indefinidamente obrigado por débitos oriundos de contrato de locação submetido à dilação automática de prazo, porque pode adotar providências em busca de sua exoneração.

Ao comentar o artigo 39 da Lei n.º 8.245/91, a Professora Maria Helena Diniz(11) leciona, com propriedade, que ?A garantia locatícia, escolhida pelo locador, por ser convencional, pode ser estipulada por qualquer prazo; não havendo convenção a esse respeito, a lei impõe sua duração enquanto se prolongar a situação jurídica que visa garantir. Assim sendo, o locador poderá usar da garantia, pela qual optou, até o instante da efetiva devolução do imóvel locado, para obter a realização das obrigações do inquilino, a não ser que haja cláusula inserida no contrato de locação dispondo o contrário, p. ex., que a garantia locatícia se estenderá por tempo certo e determinado; assim, a caução real ou fidejussória, que assegura o cumprimento dos encargos locativos, poderá ser exigida até o vencimento do prazo avençado; logo, a caução continuará em poder do locador, que dela auferirá todas as vantagens decorrentes… Isto é assim, porque as garantias locatícias são obrigações acessórias, que acompanham a principal, vencendo-se com ela, desde que se vença o prazo marcado para pagamento do débito garantido, vigendo, então, até que haja a devolução do imóvel alugado pelo locatário, hipótese em que se terá o vencimento normal da caução real, fiança ou seguro de fiança locatícia, a não ser que haja disposição contratual em contrário, operando-se o vencimento antecipado das garantias antes da restituição do prédio locado. Pelo novel Código Civil, o fiador poderá exonerar-se da obrigação a todo tempo, se a fiança tiver duração ilimitada, mas ficará obrigado por todos os efeitos da fiança durante sessenta dias após a notificação do credor (CC, art. 835; RF, 67:342; BAASP, 1.846:7; RT, 274:695, 287:554, 295:256); mas, se a fiança for por prazo determinado, só se desligará dela com o vencimento do prazo.?

A necessidade de observância ao respeito à manifestação de vontade expressada pelos contratantes, em cláusulas inseridas quando da celebração do contrato de locação, é abordada, com maestria, pelo Professor Humberto Theodoro Júnior(12), para quem ?A vedação à interpretação extensiva não autoriza o juiz a desprezar o que, expressa e claramente, as partes estipularam acerca da duração e prorrogação da fiança. O intérprete não poderia eventualmente prorrogar a fiança além do único termo ajustado entre as partes, à base de argumentos analógicos ou extensivos. Não se presta, porém, a interpretação restritiva a modificar a convenção nem, obviamente, a eliminar de seu contexto o que, efetivamente, foi querido pela vontade negocial dos contratantes?.

E conclui o renomado autor asseverando que ?A maior parte das divergências jurisprudenciais em torno da prorrogação do contrato locativo assegurado por fiança decorre da não-distinção entre os fenômenos da extinção (ex lege) e da exoneração (ex voluntate) da garantia. Não há nulidade da cláusula negocial que preveja a superveniência de prorrogação legal ou convencional da locação, ficando desde logo o fiador responsável pelas obrigações do locatário relativas ao novo período de ampliação da vigência contratual. É válida a fiança tanto para as dívidas atuais como para as dívidas futuras do novo Código Civil, art. 821. A previsão de responsabilidade do fiador até a restituição do imóvel ao locador (entrega das chaves) não prevalece, segundo a atual jurisprudência do STJ (Terceira Seção), senão durante o prazo certo estatuído no original pacto locatício. Para que se estenda às renovações ou prorrogações oriundas de aditamento contratual entre inquilino e senhorio, é necessária a anuência expressa do fiador. Não basta, para esse efeito, a simples inserção de cláusula de responsabilidade até a entrega das chaves. O art. 39 da lei do Inquilinato opera plenamente dentro do prazo determinado (ou não) estipulado originalmente no contrato de locação. Para aplicar-se após exaustão de tal prazo, ter-se-á de verificar os termos da convenção. A norma do art. 39 deverá se harmonizar com os termos do contrato a serem observados após o vencimento do prazo primitivo. Não havendo convenção expressa sobre a vigência da fiança além do prazo do contrato primitivo, a simples declaração de responsabilidade do fiador até a entrega das chaves não mantém a fiança indefinidamente. Esse parece ser a atual sinalização da jurisprudência do STJ (Terceira Seção) Operada a prorrogação legal ou convencional da locação e passando a vigorar por prazo indeterminado, a fiança, quando também prorrogada, ficará sujeita à exonerabilidade voluntária assegurada pelo art. 1.500 do antigo Código Civil (art. 835 do novo Código Civil). Ineficaz é a cláusula de renúncia prévia aos favores nos mencionados artigos, por força da garantia fundamental de liberdade individual, que não condiz com vinculação obrigacional perpétua, em temas como o da fiança. Daí a irrenunciabilidade do direito de exoneração da fiança prestada sem predeterminação de tempo. Configurada a situação de exonerabilidade e exercendo o fiador a sua faculdade liberatória, cabe ao locador o direito de exigir do inquilino novo fiador, sob pena de resolução do contrato (Lei n.º 8.245/91, art. 40, inc. IV) Não me parece, data venia, merecedora de apoio a tese de que seria desprovida de validade a convenção que expressamente estabeleça a continuidade da fiança na hipótese de prorrogação da locação por prazo indeterminado. Isso porque o Código Civil consagra a possibilidade de fiança por dívida futura e de duração indeterminada. Desde que se preveja essa prorrogação da garantia fidejussória de maneira clara e precisa, não há razão para negar-se efeito à avença. Cria-se, na espécie, um contrato de garantia de prazo indeterminado, cuja a vigência persistirá enquanto não se der a denúncia de que trata o art. 835 do novo Código Civil. Não há, outrossim, incompatibilidade entre o art. 39 da Lei do Inquilinato e o art. 835 do novo Código Civil. Prorrogado o contrato locatício por prazo indeterminado, a fiança também se prorroga por prazo indeterminado. Durante essa nova etapa da garantia, surgirá para o fiador, no entanto, a faculdade de denunciar, com efeito ex nunc, o contrato de fiança, da mesma maneira que qualquer das partes do contrato de locação de prazo indeterminado pode rompê-lo?.

A propósito do novo posicionamento que está sendo adotado no STJ sobre a matéria em análise, vale conferir os recentes precedentes: EREsp 568.968-SC; REsp n.º 762.503-PR; REsp 900.007/RS; REsp 590.956-RS; AgRg no Ag 796.567-RJ; AgRg no REsp 876.795-SP; REsp 827.047-SP; AgRg no REsp 923.347-RS e AgRg no REsp 792.195-SP, dentre outros.

Notas:

(1)     ?O fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu.?

(2)     Ato ou efeito de prorrogar; dilação ou adiamento de prazo ou de tempo; Dicionário Aurélio, Século XXI.

(3)     Ato ou efeito de aditar; acrescentamento, adição; o que se junta ou adita a alguma coisa para esclarecê-la ou completa-la; suplemento; Dicionário Aurélio, Século XXI.

(4)     ?Salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel.?

(5)     ?A locação do prédio urbano, que esteja sujeita à lei especial, por esta continua a ser regida.?

(6)     ?O fiador poderá exonerar-se da fiança, que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando, porém, obrigado por todos os efeitos da fiança, anteriores ao ato amigável ou à sentença que o exonerar.?

(7)     ?O fiador poderá exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança, durante sessenta dias após a notificação do credor.?

(8)     ?O locador poderá exigir novo fiador ou a substituição da modalidade de garantia, nos seguintes casos: IV- exoneração do fiador.?

(9)     ?Seja qual for o fundamento do término da locação, a ação do locador para reaver o imóvel é a de despejo.?

(10)     ?A locação também poderá ser desfeita: II – em decorrência da prática de infração legal ou contratual.?

(11)     Lei de Locações de imóveis urbanos comentada, Editora Saraiva, 8.ª edição, p. 177.

(12)     A Fiança e a Prorrogação do Contrato de Locação, Conferência proferida no Seminário ?A fiança locatícia em face do novo Código Civil?, realizado no Centro de Estudos Jurídicos, em 22/8/2003, Belo Horizonte-MG.

Fernando Wolff Bodziak é desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná.