A república da hipocrisia

Após minhas quatro décadas de contínuo exercício da magistratura, pensava ter visto tudo que a imaginação pudesse conceber em termos de aberrações jurídicas e injustiças praticadas contra seus membros e a própria instituição. No estado do Paraná, principalmente, até o governo do senhor José Richa, sendo presidente do Tribunal de Justiça o saudoso desembargador Alceu Conceição Machado, viviam os magistrados deste estado, em verdadeira penúria financeira, auferindo vencimentos ínfimos, sendo comum que a maioria chegava ao fim do mês ?no vermelho?, obrigando-se a recorrer a empréstimos bancários ou particulares e até mesmo a vales, quando o pagamento era efetuado através das coletorias estaduais. Imagine-se a humilhação a que eram sujeitos, sempre ficando devendo favores ao coletor ou ao gerente do banco. Ocorre que tinham que sobreviver e todo mundo sabe muito bem o que é isto. A par dos desconfortos das comarcas do interior, que às vezes não contavam com os mínimos recursos (luz, água encanada, médico, etc…), eram obrigados a cumprir rigorosamente com seu dever, pois sempre sofreram a fiscalização do Ministério Público, advogados, partes e especialmente das Corregedorias de Justiça. No entanto sobreviveram, mesmo comendo poeira e amassando barro. Os mais antigos sabem melhor.

Lembro-me de que num intervalo de aulas, na faculdade de Direito de Curirtiba, onde me formei, conversei com o meu saudoso professor de Direito Civil, desembargador José Pacheco Neto, indagando do mesmo como era a carreira da magistratura, pois eu estava inclinado a prestar concurso, pois sentia que tinha vocação para tal profissão. Porém o simpático professor, com afeto e simplicidade informou-me das desvantagens financeiras que, na época representava, pois nomeado Juiz de Direito para uma tradicional comarca do Paraná, disse ter sido obrigado a vender uma casa em Curitiba, para com seus parcos vencimentos, sobreviver naquela comarca. A sua persistência e o amor à profissão que abraçara levou-o a chegar ao ponto onde estava, como desembargador do Tribunal de Justiça, tendo chegado a ser seu vice-presidente.

Assim, os magistrados que abraçaram a carreira, naquela fase, com certeza o fizeram por verdadeira vocação, pois era um autêntico posto de sacrifício.

A gratificação do serviço eleitoral era ínfima, praticamente os juizes trabalhando de graça para a União. Mas é claro que todos abrigavam, no seu íntimo, a esperança de que no futuro, todo este sacrifício compensaria, pois se dizia que a magistratura representava uma segurança para a família.

De fato, por muitos anos, assim foi. Ganhava-se pouco mas ter-se-ia uma aposentadoria integral. No caso de morte do magistrado, a viúva teria uma pensão integral, assim como os filhos menores. Além disso, era facilitado o emprego para os filhos, que podiam até a Constituição de 1988, ser nomeados através da CLT, ou como até bem pouco tempo, em cargo em comissão ( cargo de confiança).

Pois bem, tal benefício, acaba de ser extinto, através de Resolução do Conselho Nacional da Magistratura, que através de ato discricionário, muito à maneira do Ato Institucional n.º 05, criou uma odiosa discriminação contra os familiares dos magistrados até o segundo grau, inclusive, esquecendo-se de que a mesma Carta Magna citada, estabelece no seu artigo 5.º que ?todos são iguais perante a lei?.

De qualquer forma, entendo que embora injusta, tal restrição somente poderia ter ocorrido através de lei, devidamente analisada e votada perante o Congresso Nacional.

Assim, ser parente de um magistrado, não mais é motivo de orgulho e honra, mas sim uma captis diminutio, que inibe a pessoa de almejar ocupar determinados cargos, mesmo que com salários, as mais das vezes, diminutos.

Enquanto isso, nos demais poderes da nação, o nepotismo corre solto, em todos os níveis e nós sabemos que jamais será proibido, pois para eles não existe nenhum Conselho Nacional, ou o que quer que seja.

Dias atrás, li uma entrevista em jornal de grande circulação, onde uma jornalista famosa entrevistava um advogado proeminente, na qual inquiriu-lhe, entre outras coisas, sobre a corrupção dentro do Poder Judiciário brasileiro. O advogado com muita honestidade e de maneira espontânea disse com naturalidade, que nada havia observado nesse sentido, principalmente que nunca detectou qualquer sinal de que no Poder Judiciário havia ?mensalão?. E ?mensalões?, ?mensalinhos? ou ?valeriodutos?, cá entre nós, não há mesmo. Isso é prática de outras áreas do Poder Público, como amplamente tem sido noticiado.

Aliás, eu acrescento que no Poder Judicário, à exceção do Juiz Nicolau (que não era juiz de carreira, mas classista da Justiça do Trabalho) e que está cumprindo pena de prisão por seus desmandos, e mais uns outros poucos, devidamente punidos, dificilmente se sabe de qualquer caso grave de corrupção na justiça brasileira. E quando detectado, são abertos os processos disciplinares com punições severas, inclusive afastamentos e aposentadorias compulsórias.

Sob inspiração do governo petista, os parlamentares fizeram a reforma do Poder Judiciário, através de votações, que se constituiram em verdadeira farsa, pois o ?mensalão? funcionou solto, onde supostamente pensaram em agilizar a prestação jurisdicional, suprimindo as férias coletivas de janeiro e julho. Mas com isso, somente complicaram o andamento da Justiça, pois não se lembraram das vinculações legais. Basta que, na Segunda Instância, o relator de um recurso goze férias em um determinado período diferente do revisor, ou vice-versa, para que o julgamento seja adiado. Enquanto que os magistrados não podem gozar férias no mesmo período escolar de seus filhos, conciliando os interesses e vida da família, os parlamentares continuam a ter três períodos anuais, auferindo altos subsídios, sem o correspondente retorno em trabalho, em prol da sociedade, conforme noticiou a Rede Globo, em reportagens por mim assistidas no dia dois de janeiro deste ano.

Por estas razões e tantas outras, que abordarei em outras ocasiões, é que cheguei à conclusão lamentável de que estamos vivendo sob a ?república da hipocrisia?.

Entre outros trabalhos de eméritos colegas, sobre a questão do nepotismo, destaco os que foram elaborados pelos desembargadores Antenor Demeterco Júnior, Luiz Sérgio Neiva de Lima Vieira (que serviu de base para abaixo-assinado encaminhado ao Conselho Nacional da Magistratura) e Tufi Maron Filho, que me foram encaminhados e lidos com atenção, merecendo oportuna publicação. Ressalto o brilhante e esclarecedor artigo de lavra do desembargador Lauro Laertes de Oliveira, onde faz sugestões básicas para a agilização da prestação jurisdicional, que deveria ser lido por todos e especialmente pelos nossos parlamentares federais, onde poderão colher ensinamentos fundamentais para a futura e verdadeira reforma do Poder Judiciário.

José Wanderlei Resende é desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná. 

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