A relação entre a Bioética, o Biodireito e o Direito Penal (III)

 

 

Artigo desenvolvido pelo grupo de pesquisa em Bioética e Direito Penal da Famec, sob orientação da Profª M. Ana Carolina Elaine dos Santos. Integrantes: Giovana de Mello Morillas, Sandra Cordeiro Bastos, Marcelo Schetz, Francielli Araújo Veiga, Genésio Aires de Siqueira, Diana Thais Fuchs e Marilda Lima.

 

Não se conhece na íntegra a ciência do Direito Penal sem antes investigar as partes que a compõem. Assim o é porque em sua grande maioria estuda-se o direito penal somente a partir da perspectiva dogmática, esquecendo-se que esta é apenas uma de suas partes.

Indispensável é, portanto, passar pela criminologia que tem por finalidade estudar as causas geradoras das infrações penais. Assim sendo, como uma ciência experimental cabe à criminologia a análise da realidade posta. Esta é a responsável por indicar ou fornecer os elementos fundantes para uma efetiva política criminal que culmine numa dogmática penal mais próxima da realidade criminológico-social[1].

A Política criminal é a ponte entre os conhecimentos auferidos pela criminologia, de ordem estritamente experimental, e a função do legislador, na elaboração da dogmática penal. É através da política criminal que se define o que e de que forma determinadas condutas serão criminalizadas.

Por sua vez, a dogmática penal é o reflexo da política criminal adotada. A dogmática cuida do desvalor da conduta traduzindo-a em conseqüências jurídicas. Trata-se da materialização, da positivação, dos postulados criminológicos aliado à política criminal de determinada época ou ideologia.

 

Conceito dogmático de direito penal

Entende-se por direito penal, sob a perspectiva dogmática, a tipificação de condutas ilícitas e sua conseqüente sanção. Assim sendo, Bitencourt[2] conceitua o Direito Penal como “um conjunto de normas jurídicas que tem por objeto a determinação de infrações de natureza penal e suas sanções correspondentes – penas e medidas de segurança”.

Para Cirino dos Santos[3] “o Direito Penal é o setor do ordenamento jurídico que define crimes, comina penas e prevê medidas de segurança aplicáveis aos autores das condutas incriminadoras”.

Zaffaroni e Pierangeli[4] apresentam seu conceito fundado nos seguintes argumentos: “com a expressão “direito penal” se designam – conjunta ou separadamente – duas entidades diferentes: 1) o conjunto de leis penais, isto é, a legislação penal; e 2) o sistema de interpretação desta legislação, isto é, o saber do direito penal. Tendo em conta esta duplicidade, e sem pretensões de dar uma definição – e sim uma simples noção prévia -, podemos dizer provisoriamente que o direto penal (legislação penal) é o conjunto de leis que traduzem normas que pretendem tutelar bens jurídicos, e que determinam o alcance de sua tutela, cuja violação se chama “delito”, e aspira a que tenha como conseqüência uma coerção jurídica particularmente grave, que procura evitar o cometimento de novos delitos por parte do autor. No segundo sentido, direito penal (saber do direito penal) é o sistema de compreensão (ou de interpretação) da legislação penal”.

Afirmam ainda que o Direito Penal não se confunde com os demais ramos do Direito, haja vista estar diretamente associado à infração penal com a coerção consistente exclusivamente na pena. Destaca-se que o objetivo da pena é impedir o cometimento de novos delitos enquanto que nas demais sanções, de outros ramos, o objetivo é tão somente ressarcitório [5].

Mirabete[6] expõe que sendo o Direito Penal uma ciência jurídica de caráter dogmático eis que fundamentado no direito positivo, exige-se o cumprimento das normas pela obrigatoriedade. Destarte, essencial que o operador do Direito Penal analise o caso concreto de acordo com a realidade social e evolução dos costumes deixando de lado o excesso de dogmatismo.

  

A função do Direito Penal: tutela de bens jurídicos

A função do direito penal é tutelar bens jurídicos, ou seja, valores de fundamental importância para o convívio em sociedade. Atenta-se que essa tutela só se deve fazer presente quando de fato houver uma lesão intolerante, significativa ao bem jurídico que se quer proteger, bem como essa intervenção só se legitima se também for subsidiária em relação aos demais ramos da ciência jurídica. É o que chamamos de intervenção mínima em Direito Penal.

Entretanto, adverte Cirino dos Santos[7] que tal função é aquela declarada pelo discurso jurídico oficial “os objetivos declarados do Direito Penal nas sociedades contemporâneas consistem na proteção de bens jurídicos – ou seja, na proteção de valores relevantes para a vida humana individual ou coletiva, sob ameaça de pena”, e que existe um objetivo real consistente no “controle social nas sociedades contemporâneas”.

O bem jurídico, para Cirino dos Santos[8], está atrelado à “política de controle social vez que implícito na manutenção das sociedades desiguais traduzidos em capital/trabalho assalariado sendo a concentração de riqueza nas mãos do primeiro e a generalização de miséria no segundo”.

Merolli[9] entende que o Direito Penal pode ter sua finalidade definida a partir de três concepções: a primeira é que o Direito Penal tem como finalidade a proteção subsidiária e fragmentária de bens jurídicos “a função instrumental do Direito Penal é a proteção dos bens jurídicos vitais e essenciais da sociedade, sejam estes bens individuais ou coletivos. A segunda é que sua finalidade é a proteção de valores éticos-sociais da ação, significa dizer que o Direito Penal deveria embutir valores éticos-sociais nos cidadãos, pois sua proteção só chega depois que o bem jurídico já foi lesado, que “quando entra efetivamente em ação, geralmente já é demasiado tarde”. O Direto Penal só conseguiria proteger os bens jurídicos a partir do momento em que provocasse a adesão íntima dos cidadãos aos valores protegidos penalmente. A terceira concepção é a proteção da vigência da norma jurídico-penal contrapondo-se a teoria anterior, “o Direito Penal não se presta a proteção de bens jurídicos, servindo, ao revés, para assegurar as ‘expectativas normativas da sociedade’ […] servindo a pena como instrumento de restauração da vigência da norma, frente ao fato revelado da infidelidade perante o Direito”.

Com fundamento em Munõz Conde, Merolli[10] conceitua o bem jurídico da seguinte forma: “bens jurídicos são objetos apreensíveis no mundo real que dizem respeito aos pressupostos ‘que a pessoa necessita para sua auto-realização de sua personalidade na vida social’; são, pois, valores tendentes a imutabilidade que, no terreno historicizado da “cultura”, se revelam, numa precisa contingência “real”, como fundamentais a subsistência individual e social do homem.”

Prado[11] em análise detida, inicialmente afirma estar “patente que a noção de bem jurídico decorre das necessidades do homem surgidas na experiência concreta da vida. O bem jurídico vem a ser um ente material ou imaterial haurido do contexto social, de titularidade individual ou metaindividual reputado como essencial para a coexistência e o desenvolvimento do homem em sociedade”.

O supracitado autor define algumas funções relativas ao bem jurídico: 1. Função de garantia ou de limitar o direito de punir do Estado: o bem jurídico é erigido como conceito limite na dimensão material da norma penal. 2.Função teleológica ou interpretativa: como um critério de interpretação dos tipos penais, que condiciona seu sentido e alcance à finalidade de proteção de certo bem jurídico. 3. Função individualizadora: como critério de medição da pena, no momento concreto de sua fixação, levando-se em conta a gravidade da lesão ao bem jurídico. 4. Função sistemática: como elemento decisivo na formação dos grupos de tipos da parte especial do Código Penal[12]

O texto constitucional é que oferece o norte para se estabelecer o critério de seleção de bens jurídicos. Sustenta-se ser a Constituição Federal de vital importância para a criminalização/descriminalização, pois através dela se verifica o contexto histórico subordinando-se, então, as regras axiológicas vigentes, levando em consideração o momento histórico-cultural[13].

Ainda que de forma fragmentária e subsidiária o Direito Penal precisa acompanhar o avanço tecnológico que se impõe, pois com a evolução científica surgem novos deveres e com isso a necessidade de “salvaguarda de direitos que transcendem à esfera individual, que se projetam em grupos ou na sociedade globalmente considerada; emergem como bens jurídicos relacionados com o desenvolvimento técnico e científico, frutos em grande parte da sociedade pós-industrial, na qual novos riscos são criados ou incrementados pelos processos de alta tecnologia”[14].

Assim sendo, é inegável que a vida é protegida por todos os ramos do ordenamento jurídico, mas, em especial pelo Direito Penal. A vida, como bem jurídico tutelado pelo direito penal, está protegida através da tipificação de uma gama de condutas ilícitas previstas tanto no código penal quanto na legislação penal especial.

E, nesse aspecto, o direito penal se aproxima da bioética, pois visa proteger o ser humano garantindo-lhe uma vida íntegra sob diversos aspectos, como ambiental, tecnológico e econômico. São, portanto, normas penais que tem por finalidade garantir a eticidade das condutas no ambiente biotecnológico protegendo de forma significativa a autonomia da vontade e a existência digna em seu contexto mais amplo.

 


[1] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, volume 1. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 2.

[3] SANTOS, Juarez Cirino dos Direito Penal – Parte geral. 4ª ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 3.

[4] ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 84.

[5] Idem. p. 85.

[6] MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de direito penal. 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 5.

[7] A criação do conceito de bem jurídico é atribuída a BIRNBAUM, Uber das Erfordernis einer Rechtsverletzung zum Begriff des Verbrechens, mit besonderer Rucksicht auf den Begriff der Ehrenkränkung, in Archiv des Criminalrechts, Neue Folge, v. 15 (1834), p. 149, citado por SANTOS, J. C. Direito Penal – Parte Geral. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 5.

[8] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 17.

[9] MEROLLI, Guilherme. Fundamentos Críticos de Direito Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 25.

[10] CONDE, Francisco Muñoz; ARÁN, M. Garcia. Derecho Penal – Parte General. 3ª ed. Valência: Tirante Lo Blanch, 1998, p. 65. Citado por MEROLLI, G. Fundamentos Críticos de Direito Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 26.

[11] PRADO, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 49/51.

[12] Idem. p. 60-61.

[13] Idem. p. 102.

[14] PRADO, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 113.

 

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