Inegável que a fonte de tanta confusão é o art. 199 da Lei de Execução Penal – Lei 7.210/84, que há mais de 20 anos aguarda regulamentação (?Art. 199. O emprego de algemas será disciplinado por decreto federal?).
Duas regras de ouro em qualquer departamento, agência ou corporação de natureza policial ou militar, municipal, estadual, nacional ou estrangeiro são o bom senso e a segurança.
A segurança da equipe policial é o primeiro valor considerado na guarda e transporte de algemas, para uso posterior, em um evento aleatório. Em seguida, vem a garantia da incolumidade física de vítimas potenciais e do preso.
Não há, atualmente, qualquer empecilho para que o ?detido? (em turbação da ordem pública, brigas), o ?conduzido? às delegacias (situação em que agentes públicos diversos conduzem uma pessoa em suposta condição flagrancial para verificação de sua legalidade pelo delegado de polícia) ou o ?preso? sejam algemados como forma de impedir eventual ação evasiva ou de ataque ao corpo policial. Devem prevalecer o bom senso e a segurança da equipe.
As algemas não servem apenas para garantia de segurança da equipe policial ou para assegurar a integridade física do preso em flagrante delito ou por ordem judicial, no caso específico de atos de polícia judiciária. Há uma terceira razão: inibir a ação evasiva do preso e atos irracionais num momento de desespero. Nesse ponto, pouco importa a periculosidade do agente, sua estrutura corpórea, idade ou status político e social. Veja-se, por exemplo, a surpreendente condição pessoal física de um conhecido patriarca de família dedicada às artes marciais no Rio de Janeiro, apesar da sua longevidade.
Caso emblemático, em termos de uso de algemas e segurança, foi o assassinato do juiz Rowland Barnes, 64, e sua estenógrafa, Julie Brandau, na corte do Condado de Fulton, Atlanta, EUA, no mês de março do ano de 2005, enquanto atuavam no julgamento de Brian Nichols, 34, acusado de estupro, que, sem algemas, conseguiu retirar a arma da policial da escolta e alvejá-los. O acusado, recapturado, foi descrito por seu advogado como pessoa ?com uma personalidade tranqüila e muito querido entre seus companheiros de trabalho? (fonte: http://www.cruzeironet. com.br/run/11/163485.shl).
Contudo, a necessidade de padronização é inegável. Qual a quantidade de algemas permitidas? Pode algemar pés e mãos? As mãos devem ser algemadas para frente ou para trás? As algemas devem ser colocadas no momento da leitura do mandado de prisão ou depois de neutralizado qualquer perigo potencial? É permitido algemar na frente de repórteres e fotógrafos, com o fim de aumentar a tiragem de periódicos?
Embora a questão do uso de algemas deva ser uma questão de segurança, não se pode admitir tergiversação, ou seja, seu recurso de forma antiética, com vilipêndio da pessoa humana. Infelizmente, até pela falta de regulamentação e padronização interna, são comuns as reportagens que mostram o ato de algemar, deixando a percepção clara de que o momento foi programado para o exato ângulo das câmeras e conveniência da mídia.
Também é digna de críticas a redação do art. 242 do Código de Processo Penal Militar, combinado com o seu art. 234, § 1.º que preceitua que o uso de algemas ?de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o art. 242?, com franca quebra do princípio da isonomia e sem ressalvar o cumprimento de mandados de prisão, a periculosidade, a possibilidade de porte de arma, a exaltação de ânimos e, o pior de tudo, sem excepcionar o quadro de periclitação da equipe de policiais que, além de seres humanos, são servidores públicos e merecem também a proteção estatal e de seus direitos humanos como a de não se colocarem em situação de perigo voluntário sem as devidas precauções, sem cálculo de risco.
O rol de exceção do art. 242 do CPP, para não dizer rol de decepção, agrava a sensação de impunidade, de discriminação e de favorecimento que existe no Brasil, detentor do título de país com pior distribuição de renda do mundo, ao lado de Serra Leoa, com graves distorções sociais, como se vê patente também por benesse legal conferida a ministros de Estado; governadores, respectivos secretários e chefes de Polícia; membros do Congresso Nacional, dos Conselhos da União e das Assembléias Legislativas dos Estados; magistrados; oficiais das Forças Armadas, das Polícias e dos Corpos de Bombeiros, inclusive os da reserva, remunerada ou não, e os reformados, dentre outros.
Nessa hipótese, ao invés da periculosidade ser presumida por força da situação flagrancial, da exaltação de ânimos (uma briga de rua ou de vizinhos alcoolizados pode exigir maior desenvoltura na solução do que a prisão de um estelionatário), ou por força de mandado de prisão, aquela – a periculosidade – é afastada em razão do cargo ocupado, situação flagrante, sim, de inconstitucionalidade. O cargo público é instituído em prol da prestação eficiente e qualitativa do serviço público e não como escudo do agente público. O uso transverso do cargo público (não como ônus, mas como bônus) foi coibido, recentemente, pelo STF, em outra situação, quando julgou inconstitucional a alteração promovida no art. 84 do CPP pela Lei n.º 10.628/02, que conferia prerrogativa de foro no julgamento de ações por improbidade administrativa.
Outro equívoco comum é associar o uso da algema ao emprego de força, quando, na verdade, a algema é forma de neutralização da força e de imobilização do delinqüente. É menos traumático, doloroso e arriscado imobilizar o meliante pelo recurso à algema, do que pelo acesso a técnicas corpóreas de imobilização.
Essa argumentação é recorrente quando a rede do Estado pega não só os ?bagres?, mas também os ?tubarões?, aqueles que negam de pés juntos que não possuem dinheiro no exterior não declarado à Receita Federal, negam até a assinatura, muito comum em tempos de ?mensalão?. As algemas cabem perfeitamente nos pulsos do ?colarinho branco? (white collar crime), que é quem tem mais acesso a mecanismos de fuga (inclusive helicópteros). Se é para repensá-las, então a reflexão deve atingir todo o direito penal e processual penal, não somente o criminoso com alto poder aquisitivo ou detentores de altas patentes ou cargos públicos.
Em trâmite, há o projeto de lei do Senado Federal n.º 185/2004, que regulamenta o emprego de algemas. Seu uso passa a ser excepcional e obriga o registro em livro especial com a indicação do motivo de seu uso, lavratura de termo, assinatura da autoridade e juntada ao inquérito policial. O uso de algemas é ressalvado quando o preso ofereça resistência ou tente fugir. A pergunta que fica é a seguinte: e se o preso efetivamente fugir, apesar de todas as cautelas? Como o preso será conduzido? De mãos dadas, lado a lado, mediante torção, gentilmente sob o olhar vigilante dos policiais? Como vigiar preso e perímetro, simultaneamente, durante o deslocamento e evitar um possível resgate? Não se pode tapar o sol com a peneira. O projeto de lei, à medida que assegura garantias ao preso, também deve assegurar instrumentos de controle, de segurança pessoal da equipe policial e o instrumento alternativo à algema para a condução diligente e eficaz do preso.
Mas o projeto de lei também tem seus méritos.
Ficará vedado o emprego de algemas como forma de sanção (art. 3.º, I do PLS), que deve compreender o uso abusivo e vexatório, com excessiva exposição pública, com intenção de constranger e não de cumprir a lei. O uso antiético da algema não precisaria ser objeto de projeto de lei se fossem observadas as cautelas legais e o bom senso. Espera-se que a vedação expressa impeça a continuidade no abuso de instrumento de trabalho e não necessite ser criminalizada.
Propugna-se, pois, que a periculosidade seja presumida quando haja mandado de prisão expedido contra a pessoa sujeita à jurisdição penal do Estado e que excepcional seja a sua não utilização, por violar a segurança da equipe policial e o bem maior que é a vida dos profissionais da área de segurança pública. Caso se enxergue uma colisão de direitos fundamentais, essa deve ser resolvida em prol da sociedade, com o recurso que imobilize e neutralize efetivamente o preso, até posterior deliberação da autoridade competente, policial ou judiciária.
Rodrigo Carneiro Gomes é delegado de Polícia Federal em Brasília/DF, pós-graduado Processo Civil e pós-graduando em Segurança Pública e Defesa Social, professor da Academia Nacional de Polícia. É ex-assessor de Ministro do STJ.