René Ariel Dotti
(1) Introdução
A melhor forma de comentar o passado e o presente da Reforma Penal e Penitenciária introduzida pelas leis n.ºs 7.209 e 7.210, de 11 de julho de 1984,(1) certamente será a reconstituição de alguns fatos relevantes no panorama da teoria e da prática das ciências penais, para conhecimento dos penalistas mais jovens e reflexão dos mais antigos. Acredito que para esse objetivo o depoimento é mais ilustrativo que o comentário e que a notícia é mais esclarecedora que o debate. Um levantamento histórico da legislação, de movimentos humanitários promovidos por núcleos sociais e de eventos acadêmicos e científicos, repercutiram na doutrina e na jurisprudência para harmonizar o ordenamento positivo com o sentimento generalizado de que a lei é somente um dos meios das instâncias formais (Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário e órgãos do sistema penitenciário) na luta contra a violência e a criminalidade. Ao lado das instâncias materiais (família, escola, instituições sociais e culturais), a pena e a medida de segurança constituem as reações mais graves do Estado para prevenir a reprimir as infrações penais.
A partir dos anos 60 foi possível reconhecer que a crise aberta em muitos domínios do sistema penal resultou da queda dos conceitos formais que durante meio século abasteceram as discussões acerca dos problemas do delito e do delinquente. Aquela orientação, inspirada em correntes do positivismo jurídico, fecundou a superstição de que a lei esgota o direito e realiza a justiça. Algumas causas podem ser facilmente identificadas: a) a oposição funesta entre o Direito Penal e a Criminologia e outras ciências da conduta; b) a exaustão da dogmática e a categoria dos chamados juristas-penalistas. A exegese da lei até a sua exaustão, o empenho em atomizar conceitos e a distância cada vez mais acentuada do Homem, da vida e do mundo constituíram as barreiras que comprometeram o aprimoramento das instituições penais. Em muitas oportunidades foi denunciado o excesso dos exercícios dogmáticos e se reconheceu abertamente a falta de melhor evolução dos métodos e meios da ciência penal até a metade do século XX.
(2) As repercussões do Anteprojeto Hungria
A partir dos anos 60, com os debates acerca do anteprojeto de Código Penal elaborado pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Hungria, (2) surgiram inúmeras manifestações nos centros jurídicos do país visando reduzir as hipóteses da pena privativa de liberdade elevada à condição de pena total para um imenso número de ilícitos independentemente de sua gravidade.
Independentemente, porém, daquela odisséia entre a promulgação do diploma e sua revogação que durou 10 anos – o Anteprojeto Hungria mereceu discussões e debates científicos em variadas instâncias acadêmicas e profissionais. O texto foi integralmente publicado nos volumes 1 (abril/junho) e 2 (julho e setembro), do ano de 1963, da Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal que ingressava em sua nova fase graças ao empenho e à liderança de Heleno Cláudio Fragoso e ao valioso apoio da Universidade Federal do Estado da Guanabara.(3) No ano de 1965, um grande ciclo de conferências foi realizado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, com o patrocínio do Instituto Latino Americano de Criminologia e a Secretaria de Estado da Justiça, reunindo os maiores penalistas brasileiros e um grande número de participantes.
Vários aspectos do Anteprojeto Hungria foram analisados em meu artigo “Heleno Fragoso e a reforma penal”(4) e no livro Casos criminais célebres.(5)
Não obstante a frustração pelos sucessivos adiamentos da entrada em vigor do Código Penal de 1969,(6) situação que provocou a maior vacatio legis da história legislativa brasileira, uma reordenação ao sistema de penas foi iniciada através do Poder Judiciário de São Paulo. O instituto da prisão-albergue foi posto em prática em face dos provimentos n.ºs XVI/65 e XXV/66, expedidos pelo Conselho Superior da Magistratura em 7 de outubro de 1965 e 14 de novembro de 1966. Foi um passo importante para romper com a omissão e o imobilismo gerados pela inutilidade da Lei n.º 3.274, de 2 de outubro de 1957, que dispunha sobre Normas Gerais do Regime Penitenciário e ampliava atribuições da Inspetoria-Geral Penitenciária. Na verdade, aquele diploma(7) limitava-se a reproduzir as regras básicas da ONU (1955) sobre os regimes penitenciários. Tinha natureza e conteúdo meramente programáticos mas não era dotado de eficácia coercitiva. Nada, portanto, alterava ou modificava o quadro vigorante.
(3) A incisão cirúrgica no sistema da prisão total
Por muitos anos, desde o advento do Código Penal de 1940, a perda da liberdade, como expressão totalizadora, funcionou plenamente nos domínios desse diploma e da Lei das Contravenções Penais. Para um número aproximado de 260 infrações (sem contar as formas qualificadas e de especial diminuição penal), aplicava-se a pena privativa de liberdade, com maior número para a detenção. A conversão da pena de prisão pela sanção pecuniária era admitida em raras oportunidades. Por exemplo: arts. 129, § 5.º; 155, § 2.º; 170, 171, § 1.º; 175, § 2.º e 180, § 3.º.
Uma incisão cirúrgica foi feita no sistema com a introdução de idéias e propostas que viriam flexibilizar a execução da pena privativa de liberdade. O Código Penal de 1969/73(8) já previa como variante de execução da pena de prisão a existência do estabelecimento penal aberto no qual cumpririam pena, em regime de semiliberdade, os condenados por tempo inferior a seis anos de reclusão ou oito anos de detenção, que fossem de escassa ou nenhuma periculosidade (art. 38, § 3.º). Também se institucionalizou a prisão-albergue para o condenado primário e de nenhuma ou escassa periculosidade (art. 40).
(4) A Moção de Nova Friburgo
A Associação Paulista do Ministério Público encaminhou ao Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, um anteprojeto de mudança do sistema de penas. O trabalho teve como ponto de partida a Moção de Nova Friburgo, evento promovido para discutir o anteprojeto de Código de Execuções Penais (1970) elaborado por comissão da qual participou, como relator, o Professor Benjamin de Moraes Filho.
O documento advertia que “as falhas do nosso sistema penitenciário são devidas, antes de mais nada, ao anacronismo da legislação penal e processual penal, presas, ainda, à idéia de ser a pena de prisão o remédio indispensável ao tratamento do criminoso, de qualquer grau de periculosidade e seja qual for a gravidade do delito praticado, bem como de ser a segregação cautelar o melhor meio para garantir a eficácia da persecução criminal”.(9) Partindo de suas conclusões, os procuradores Francisco Papaterra Limongi Neto e Antonio Carlos Penteado de Moraes elaboraram a tese “Sugestões para a reforma do sistema de penas”, aprovada no I Congresso do Ministério Público de São Paulo, em dezembro de 1971.(10)
(5) A Moção de Goiânia I
Em 1973, comemorando o cinqüentenário da morte de Ruy Barbosa, foi realizado em Goiânia o Seminário de Direito Penal e Criminologia, coordenado pelo professor Licínio Leal Barbosa. Notáveis mestres e profissionais compareceram ao evento aprovando a Moção de Goiânia I, na qual se preconizou: a) a necessidade de considerar o Direito Penal como disciplina de defesa social e da recuperação do delinqüente, objetivando a prevenção de novos delitos; b) a inclusão da Criminologia nos currículos dos cursos de Direito; c) a adoção do regime de prisão aberta através da prisão-albergue para os condenados de escassa ou nenhuma periculosidade; d) ampliação dos institutos do perdão judicial, do sursis, do livramento condicional e de outras medidas substitutivas da prisão.(11)
(6) O V Congresso Nacional de Direito Penal e Ciências Afins
Com a preocupação de discutir as propostas legislativas emergentes do Código Penal de 1969/1973 e dos projetos de códigos de Processo Penal e de Execuções Penais, a capital paulista acolheu o V Congresso Nacional de Direito Penal e Ciências Afins (1975). Os principais temas foram: a) das penas e sua aplicação; b) das penas e sua execução; c) periculosidade: aferição e conseqüências penais; d) a reforma penitenciária. Um grande número de participantes aprovou as conclusões que agora são fielmente transcritas para que se tenha a exata compreensão dos problemas da época e dos esforços para enfrentá-los.
“1.ª – O grau de periculosidade aferido obrigatoriamente pelo juiz, na sentença, consoante a legislação penal proposta, ainda que possa ser revisto no curso da execução da pena, é de transcendental relevância, pois indicará o tipo de estabelecimento penal a que o sentenciado deverá ser recolhido, ligando-se diretamente, com a oficialização da prisão-albergue, além do sursis em regime de penas. 2.ª – Tendo em vista os dispositivos da legislação penal brasileira proposta, que estabelece a aferição de periculosidade mediante exame criminológico, deve tal exame ser feito, na medida do possível, por especialistas aptos para definir a capacidade criminológica e o grau de adaptação social do delinqüente. 3.ª – Deve ser mantida a aplicação da pena por tempo relativamente indeterminado, quanto ao mínimo, e somente às categorias dos criminosos habituais e por tendência. 4.ª – Reexame parcial do conceito de criminoso habitual, principalmente no que tange à habitualidade presumida que, na forma da legislação penal proposta, constitui uma presunção de culpabilidade. 5.ª – Reexame do conceito de criminoso por tendência, que deveria ser melhor explicitado. 6.ª – A pena deve assentar-se no requisito da culpa, de sorte que, ao ser aplicada, surge como retribuição ética da conduta. No curso da execução, porém, deve ser acrescido um sentido de readaptação. 7.ª – Urgência de uma reforma no sistema de penas. Que se fortaleça a luta que se vem empenhando, no sentido de que a pena de prisão se restrinja a delinqüentes que representam um perigo social, ou aos casos de comprovada necessidade, encontrando-se para os outros tipos de infratores substitutivos penais satisfatórios. 8.ª – Nos casos de infrações passíveis de penas leves, e, ademais, sendo o agente primário, sem periculosidade e tiver reparado o dano, é de conveniência possa o juiz encerrar o processo após a instrução, reconhecendo a perempção. 9.ª – Independentemente da vigência do novo Código Penal, adoção em todos os Estados do Brasil do regime de “prisão-albergue”, quer através de lei estadual, quer através de provimentos dos órgãos competentes das magistraturas estaduais, pois, a concessão do trabalho externo em obras públicas ou entidades privadas, nada mais é do que a execução da pena através de laborterapia. 10.ª – Na parte geral da legislação repressiva proposta devem figurar dispositivos regulamentando a possibilidade de perdão judicial, considerando-o causa de extinção da periculosidade, subordinado a determinadas condições subjetivas e objetivas. 11.ª – A legislação penal proposta deverá admitir, como já o faz o vigente Código Penal Militar, a renovação do sursis quando a infração anterior não revelar má índole do agente. Ficaria assim redigido um dispositivo: ‘A execução de pena privativa de liberdade, não superior a dois anos, pode ser suspensa por dois a seis anos, se o condenado não tiver sofrido condenação anterior por infração penal reveladora de má índole, for de escassa ou nenhuma periculosidade e tiver demonstrado o sincero desejo de reparar o dano.’ 12.ª – Aquele que comete novo crime cinco anos após a extinção ou cumprimento da pena por crime anterior tem direito a postular o sursis , graças à prescrição da reincidência em todos os seus efeitos. 13.ª – Necessidade de um Código de Execuções Penais dirigindo e orientando toda a política penitenciária do País, objetivando-se que não fiquem à mercê de deficiências da Administração, aqueles que estão privados de liberdade (reservado, é claro, aos Estados, o direito de elaborar normas supletivas).14.ª – Reformulação do sistema de execução das penas, modernizando o ultrapassado regime penitenciário brasileiro, como fundamento na realidade do País e nas necessidades do momento, atinando-se para os novos conceitos de execução penal no mundo moderno.(Segue).
Notas:
(1) Publicadas no DOU em 13 de julho de 1984 para entrar em vigor 6 (seis meses após).
(2) Publicado pelo Ministério da Justiça em 1963 para receber crítica e sugestões.
(3) Com a transferência da Capital Federal para Brasília (21/4/1960), o então Distrito Federal, constituído pela cidade do Rio de Janeiro, transforma-se em Estado da Guanabara. Tal situação perdurou até 1975 quando ocorreu a fusão entre os Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, sob a denominação de Rio de Janeiro.
(4) Em Ciência e Política Criminal em Honra de Heleno Fragoso, Rio de Janeiro: Editora Forense, 1992, p. 517 e s.
(5) Ed. RT, São Paulo, 1998, p. 321 e s.
(6) O Dec.-lei n.º 1.004, de 21/10/1969 (oriundo do Anteprojeto Hungria) deveria entrar em vigor em 1.º/1/1970 o que não ocorreu em face das leis de adiamento (n.º 5.573, de 1.º/12/1969; n.º 5.597, de 31/7/1970; n.º 5.749, de 1.º.12.1971; n.º 5.857, de 7/12/1972 e n.º 6.063, de 27/6/1974). Finalmente, a Lei n.º 6.578, de 11/10/1978, revogou o Dec.-lei n.º 1.004/69
(7) Expressamente revogado pela Lei n.º 7.210/84, art. 204.
(8) Código Penal de 1969 (Dec.lei n.º 1004, de 21/10/1969)com as alterações determinadas pela Lei n.º 6.016, de 31/12/1973.
(9) A Moção foi publicada na RT, v.425, p. 407.
(10) Em Reforma do sistema de penas, São Paulo, 1972, p. 37 e s.
(11) Em Ciência Penal, Rio de Janeiro: Forense, n.º 1 de 1982, p. 9/11.
René Ariel Dotti. Advogado e professor universitário, foi corredator dos anteprojetos de reforma da Parte Geral do Código Penal e da Lei de Execução Penal.