A recepção das leis n.ºs 7.209 e 7.210/84 à Constituição de 1988
René Ariel Dotti
(8) As comissões de reforma do sistema criminal
Em 1980, o Ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel instituiu duas comissões de juristas para a redação de três anteprojetos essenciais para a reforma do sistema penal: a) uma nova Parte Geral do Código Penal; b) uma lei específica de execução penal; c) um novo Código de Processo Penal.
A primeira (redação) foi composta por Francisco de Assis Toledo (presidente e coordenador), Francisco de Assis Serrano Neves, Ricardo Antunes Andreucci, Miguel Reale Júnior, Hélio Fonseca, Rogério Lauria Tucci e René Ariel Dotti(1). A segunda (revisão) foi integrada por Francisco de Assis Toledo (coordenador), Dínio Santos Garcia, Jair Leonardo Lopes e Miguel Reale Júnior(2).
Os debates sobre o disegno di legge se iniciaram com a sua primeira publicação, ocorrida na Folha de São Paulo. Foram muitas e intensas as discussões no meio acadêmico, nas corporações de profissionais do Direito (OAB, Escolas Nacional e Estadual da Magistratura e do Ministério Público), com especialistas das ciências penais, profissionais do foro, da imprensa e do público em geral.
Um evento para avaliar os três anteprojetos, promovido pelo Ministério da Justiça/Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e o copatrocínio da Universidade de Brasília e do Governo do Distrito Federal (Brasília, 27/30.09.81), reuniu um número aproximado de 3.000 participantes.
Conferências, comunicações e 80 (oitenta artigos) deram a medida da repercussão dos trabalhos que foram encerrados com a divulgação da Carta de Princípios, que teve, entre seus redatores, a contribuição do Ministro Evandro Lins e Silva(3). A comissão de revisão realizou minuciosa análise e avaliação de um grande volume de sugestões e críticas pontuais.
(9) O anteprojeto da Lei de Execução Penal
Também duas comissões se encarregaram do anteprojeto da LEP: a) redação; b) revisão. A primeira, formada por Francisco de Assis Toledo (coordenador), René Ariel Dotti, Benjamin Moraes Filho, Miguel Reale Júnior, Rogério Lauria Tucci, Ricardo Antunes Andreucci, Sérgio Marcos de Moraes Pitombo e Negi Calixto(4).
As discussões nacionais sobre o disegno di legge foram ensejadas pela Portaria n.º 429, de 22 de julho de 1981, declarando ser “do interesse do Governo o amplo e democrático debate sobre a reformulação das normas referentes à execução da pena”(5).
A comissão revisora, que conheceu e considerou muitas contribuições(6), foi instituída em 1982 (um ano após o começo dos trabalhos da primeira) por Francisco de Assis Toledo (coordenador), René Ariel Dotti, Jason Soares Albergaria e Ricardo Antunes Andreucci.
Participaram das reuniões iniciais os Professores Everardo da Cunha Luna e Sérgio Marcos de Moraes Pitombo. Um crédito especial deve ser concedido ao Doutor Pio Soares Canedo, que presidiu o Conselho Nacional de Política Penitenciária, órgão de apoio da Reforma(7).
(10) A nova Parte Geral do Código Penal
A nova Parte Geral do Código Penal, quanto às penas e às medidas de segurança, cumpriu as seguintes coordenadas:
(10.1.) O princípio da intervanção mínima
Nas discussões científicas que antecederam o anteprojeto da Parte Especial do Código Penal, destacava-se a preocupação em reduzir a intervenção penal do Estado aos casos de extrema necessidade.
Os desvios da política legiferante se acentuaram nos anos 60 e 70 com a hipercriminalização. O princípio da intervenção mínima traduz a ideia expressa por Maihofer, de um Direito Penal como ultima ratio da política social, autêntica exigência ética para orientar o legislador quanto aos fatos a punir e quanto às penas a aplicar(8).
Ao institucionalizar as penas restritivas de direitos, a Lei n.º 7.209/84 acolheu o generoso princípio da intervenção mínima: a pena de prisão somente em casos de maior gravidade objetiva e da maior culpabilidade.
(10.2.) As alternativas à pena de prisão
A Exposição de Motivos ao Projeto de Lei n.º 1.656/83, do qual resultou a Lei n.º 7.209/84, ao sustentar a introdução das penas restritivas de direitos, contém passagens de rigorosa atualidade: “26. Uma política criminal orientada no sentido de proteger a sociedade terá de restringir a pena privativa de liberdade aos casos de reconhecida necessidade, como meio eficaz de impedir a ação criminógena cada vez maior do cárcere. (…) Não se trata de combater ou condenar a pena privativa de liberdade como resposta penal básica ao delito. Tal como no Brasil, a pena de prisão se encontra no âmago dos sistemas penais de todo o mundo. O que por ora se discute é a sua limitação aos casos de reconhecida necessidade. 27. As críticas que em todos os países se tem feito à pena privativa de liberdade fundamentam-se em fatos de crescente importância social, tais como o tipo de tratamento penal frequentemente inadequado e quase sempre pernicioso, a inutilidade dos métodos até agora empregados no tratamento de delinquentes habituais e multirreincidentes, os elevados custos de construção e manutenção dos estabelecimentos penais, as consequências maléficas para os infratores primários, ocasionais ou responsáveis por delitos de pequena significação, sujeitos, na intimidade do cárcere, a sevícias, corrupção e perda paulatina da aptidão para o trabalho.”
A orientação de limitar ao máximo o encarceramento como pena vinha sendo defendida nos mais variados e distantes foros de especialistas em ciências humanas e penais desde o início dos anos 60.
Em texto publicado logo após o advento da Lei n.º 7.209, eu disse que “a massificação do procedimento de execução das penas privativas de liberdade, a ineficácia da pena de multa não obstante a sua recente e já desatualizada correção(9) – bem como a insegurança decorrente do funcionamento das chamadas penas acessórias, mostram que o sistema punitivo brasileiro se confina na perda da liberdade.
A prisão é o monocórdio imposto para executar a grande sinfonia do bem e do mal. Em conseqüência de tal fenômeno, os problemas sociais e culturais que se vertem no crime e na conduta do agente estão imersos na desgraça e na maldição”(10).
(10.3.) A culpabilidade como fundamento e limite da pena
A culpa deve ser, sempre, o fundamento e o limite para justificar a pena em todos os seus momentos: cominação, aplicação e execução. Daí a eliminação do sistema do duplo binário, ou seja, da execução sucessiva da pena e da medida de segurança (sistema vicariante). A mudança estabelece que a pena tem como pressuposto a culpabilidade; a medida de segurança tem como base a periculosidade.
(10.4.) A individualização da pena
A garantia constitucional da individualização da pena foi ampliada com a Reforma de 1984 para prever que a culpabilidade é o primeiro indicador para a pena-base. Inovando quanto à redação original do Código Penal, o art. 59 prevê o exame do comportamento da vítima como fator de oscilação para mais ou para menos da medida penal. O princípio da proporcionalidade foi declarado através da fórmula da necessidade e suficiência para a reprovação e prevenção do crime.
(10.5.) Os novos limites da pena de multa
A pena de multa em dias foi cominada no Código Criminal do Império (art. 55) e mantida no Código de 1890 e na Consolidação das Leis Penais (1932). O critério foi abandonado pelo Código de 1940, produzindo a maior vaga de impunidade.
Com o sistema fixado pela Reforma liberou-se o magistrado das quantidades tarifadas de resposta para realizar uma individualização mais adequada ao condenado e aos interesses sociais.
(10.6.) A pena como processo de diálogo
Em síntese muito expressiva, Caliess demonstra que tanto o Direito Penal como o direito positivo em geral constituem a estrutura dialogal de sistemas sociais. A pena deve ser concebida como um processo de diálogo entre o Estado e a comunidade(11).
Entendo que esse processo de diálogo deve ser estabelecido entre o condenado e a sociedade com a moderação do Estado, abrindo os cárceres à comunidade. A pena cumpre importante função social quando oferece alternativas ao comportamento criminal, através da criação de possibilidades de participação como processo de integração permanente entre o delinquente e a comunidade.
Em tal sentido, Mir Puig adverte que o condenado não pode ser tratado como puro objeto de um processo coercitivo do Estado, mas como verdadeiro sujeito de um processo de regulação e aprendizagem, que deve tender não só à adaptação das normas dominantes como também a elaborar alternativas para o comportamento delituoso e, com elas, a participação nas relações sociais(12).
As penas restritivas de direitos ampliadas com a Lei n.º 9.714/98 são muito adequadas para realizar uma Política Criminal que responde satisfatoriamente aos interesses do magistério punitivo, além de não conter sentido aflitivo e discriminatório das sanções de feição clássica.
(11) Uma lei específica de execução penal
No ano de 1933, Cândido Mendes de Almeida, José Gabriel de Lemos Brito e Heitor Carrilho, apresentaram ao Governo um Anteprojeto de Código Penitenciário da República. Seguiram-se os anteprojetos de Oscar Stevenson (1957), Roberto Lyra (1963) e Benjamin Moraes Filho (1970).
Mas aquelas propostas não tiveram andamento além do protocolo de chegada no Congresso Nacional. Vingava a superstição de que a execução das penas e medidas de segurança não poderia ser objeto de lei federal.
A resistência foi vencida pelo empenho e lucidez do Ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel, como se verifica pela Exposição de Motivos n.º 213, de 9 de maio de 1983(13), ao projeto da Lei n.º 7.210/84, que indica dados para a reconstituição histórica das iniciativas visando a elaboração de uma lei própria para regular a matéria.
Esse documento, aliás, consagrou a designação Direito de Execução Penal, que eu já havia proposto em um dos capítulos de minhas Bases e Alternativas para o sistema de penas, na primeira edição(14).
Um retrospecto acerca das ideias e dos movimentos de humanização do sistema penitenciário brasileiro a partir dos anos 60 não pode ignorar o trabalho samaritano de Alípio Silveira e suas obras para atenuar os rigores da pena privativa de liberdade, com as variantes da prisão albergue e do regime semi-aberto(15).
O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, criado em 1980, foi o grande impulsor da renovação dos meios e métodos para a reforma do sistema de penas, ao concentrar em seu âmbito os trabalhos dos anteprojetos.
A literatura acerca da evolução legislativa e a autonomia do Direito de Execução Penal é muito vasta, sem omitir as frustrações e as crises(16) e os eventos científicos relevantes(17).
É indispensável registrar a pesquisa e as obras do especialista Professor Maurício Kuehne e a sua variada e permanente produção acadêmica e técnica(18), além de outros estudiosos e mestres(19).
(12) As alterações pontuais na legislação de reforma
É possível concluir que a conservação de imenso número de dispositivos das leis n.ºs 9.209 e 9.210/84 e a sua recepção pela Constituição de 1988 valem como crédito especial deferido pelos operadores jurídicos durante esse quarto de século.
Um texto próprio será oportunamente publicado para abordar os dispositivos revogados, alterados e acrescidos na Parte Geral do Código Penal e na Lei de Execução Penal.
Mas é plenamente positiva a conta corrente da teoria e da prática da execução penal em nosso país, apesar dos intervalos de anomalia legislativa como o decretado pela Lei n.º 10.792/03, que instituiu o malsinado Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), por mim batizado de Regime Da Desesperança(20), autêntica expressão moral e material do triunfo, nesse domínio, da doutrina totalitária do direito penal do inimigo.
Não é paradoxal a conclusão de que a Lei de Execução Penal é a grande e permanente fomentadora das rebeliões carcerárias. Com efeito, são os princípios de dignidade da pessoa humana e do devido processo legal que motivam as reivindicações e as revoltas dos presidiários no processo de lutas pelos seus direitos e garantias.
E que justificam, embora em raros precedentes, a interdição de estabelecimento penal que estiver funcionando em condições inadequadas ou com infringência aos dispositivos da LEP (art. 64, VIII).
Mas esse é outro capítulo, escrito pela sensibilidade e coragem de alguns magistrados que cumprem o dever funcional e a missão espiritual de aplicar a Constituição como um breviário sagrado do cidadão e da sociedade.
Notas:
(1) Nomeado pela Portaria n.º 429 de 22 de julho de 1981. É necessário ressaltar que o Professor Sérgio Marcos de Moraes Pitombo participou ativamente dos trabalhos da comissão nas reuniões de São Paulo.
(2) Vide a Exposição de Motivos da Lei n.º 7.209/84, parágrafo 5.º.
(3) Vide Anais do I Congresso Brasileiro de Política Criminal e Penitenciária, Brasília: Ministério da Justiça/Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, 1982, volumes I e II.
(4) Vide a Exposição de Motivos da Lei n.º 7.210/84, item 186.
(5) Vide a Exposição de Motivos da Lei n.º 7.210/84, item 186.
(6) Especialmente as oriundas do I Congresso Brasileiro de Política Criminal e Penitenciária (Brasília, 1981).
(7) Vide a Exposição de Motivos da Lei n.º 7.210/84, item 186.
(8) Referido por Anabela Miranda Rodrigues, A posição jurídica do recluso na execução da pena privativa de liberdade, Coimbra, 1982, p. 17.
(9) A Lei n.º 6.416/77 reajustou os valores de multa constantes do Código Penal e na Lei de Contravenções Penais, na proporção de 1:2.000 (um por dois mil) (art. 4.º).
(10) René Ariel Dotti, “O novo sistema de penas”, em Reforma penal, São Paulo: Saraiva, 1985, p. 87.
(11) Cf. Santiago Mir Puig, Introducción a las bases del Derecho Penal, Barcelona, 1976, p. 86.
(12) Introducción, cit., p. 85/86.
(13) Diário do Congresso Nacional, seção II, de 29/5/1984.
(14) Curitiba: Editora Lítero Técnica, 1980, Seção IV, p. 391 e s.
(15) Prisão Albergue – Teoria e Prática, 3.ª ed., São Paulo: Edição Universitária de Direito, 1973; Prisão albergue e regime semi-aberto, São Paulo: Brasilivros Editora e Distribuidora Ltda, São Paulo, volumes I e II, 1981.
(16) Dotti, René Ariel. “Textos antigos: crise permanente”, em Casos criminais célebres, 3.ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 343 e s.
(17) Por exemplo: os congressos nacionais de Direito Penal e ciências afins (Recife, 1970) e São Paulo (1975) e a Moção de Goiânia (1973). Em Dotti, René Ariel. As novas dimensões da pena, Curitiba: Editora Lítero Técnica, 1975 e A reforma penal e penitenciária, Curitiba: Editora Lítero Técnica, 1980.
(18) Por todas: Lei de Execução Penal.
(19) Como referência: Barbosa, Licínio. Direito de Execução Penal, Goiânia: Editora Século XXI, 2001.
(20) Dotti, René Ariel. “Carta para Maria Thereza”, em Movimento Antiterror e a Missão da Magistratura, 2.ª Ed., Curitiba: Juruá Editora, 2005, p. 25.
René Ariel Dotti. Advogado e professor universitário, foi corredator dos anteprojetos de reforma da Parte Geral do Código Penal e da Lei de Execução Penal.