A discussão nacional em 1975 e a Lei n.º 6.416, de 24 de maio de 1977
René Ariel Dotti
(6) O V Congresso Nacional de Direito Penal e Ciências Afins
Com a finalidade de discutir os projetos de Código de Processo Penal e de Execuções Penais(1) e o novo Código Penal (Dec.-lei n.º 1.004/69)(2), realizou-se em São Paulo o V Congresso Nacional de Direito Penal e Ciências Afins (1975).
Prosseguimos, no artigo de hoje, com a transcrição das conclusões daquele evento que reuniu milhares de participantes. 15.ª – A execução da pena deve ser feita sob um sistema interacionista, dinâmico e que garanta maiores poderes ao Juiz na individualização concreta da pena, com efetiva fiscalização jurisdicional e que proteja todos os direitos da pessoa humana não atingidos pela sanção.
16.ª – A duração da pena pode ser reduzida na fase de execução por força da prevenção especial, corrigindo-se os erros de valorização do grau de desadaptação do condenado, não ficando o juízo da execução adstrito ao grau mínimo.
17.ª – No atual momento histórico brasileiro, devem ser eliminadas as expressões “reclusão”, “detenção’ e “prisão simples’, substituídas pela expressão “prisão’. 18.ª – É conveniente a substituição das expressões “velho’, “enfermiço’ ou “enfermo’ e “criança’ contidas na legislação penal proposta, pela fórmula genérica: crime cometido contra quem tenha sua capacidade de defesa de qualquer forma reduzida. 19.ª – O traficante de entorpecentes deve ser punido com maior severidade, levando-se em conta a nocividade da droga e a extensão do tráfico”(3).
(7) A Lei n.º 6.416, de 24 de maio de 1977
Foram da maior importância as alterações introduzidas no sistema das penas e das medidas de segurança em face da Lei n.º 6.416/77, cujo projeto foi elaborado por uma comissão coordenada pelo Professor Francisco de Assis Toledo.
Já se indicavam, naquele texto, algumas linhas da Reforma Penal e Penitenciária que este saudoso mestre iria orientar poucos anos depois, por ocasião dos anteprojetos da Lei n.º 7.209 e n.º 7.210/84, redigidos e publicados em 1981.
A natureza e a dimensão dessa parte da Reforma ficaram evidentes com o anteprojeto redigido pelo Ministro Nélson Hungria, do Supremo Tribunal Federal (1963), e concluída em 1984 com as leis n.º 7.209 e 7.210.
Surgiram, naquela fase do proceder histórico da reforma, movimentos acadêmicos e páginas doutrinárias para reverter o sistema ancorado basicamente na prisão contínua.
O notável trabalho do Ministro Hungria exerceu enorme influência para reduzir o sentido meramente retributivo da pena, abrindo espaços com alternativas na execução e na a previsão da prisão aberta. É oportuno lembrar a norma do art. 35 de sua proposta legislativa: “A pena de reclusão e a de detenção, aquela sob regime mais rigoroso que esta, são cumpridas em estabelecimentos separados ou em seções especiais do mesmo estabelecimento, e devem ser executadas de modo que exerçam sobre o condenado uma individualizada ação educacional, no sentido de sua gradativa recuperação social.”
A rubrica lateral ao aludido dispositivo declarava: “Função finalística das penas privativas de liberdade”. E o art. 37 previa o estabelecimento penal aberto. Era o reflexo em nosso país do modelo suíço da chamada prisão aberta.
(7.1) Alternativas para o isolamento carcerário
Embora mantendo integralmente o art. 29 do Código Penal de 1940, declarando que a pena de reclusão e a de detenção “devem ser cumpridas em penitenciária, ou, à falta, em seção especial de prisão comum”, a Lei n.º 6.416/77 inovou no campo da execução. O § 2.º do referido dispositivo previa, em favor das mulheres condenadas, “o benefício do trabalho externo”.
O art. 30 teve o seu caput ampliado, dispondo que o período inicial do cumprimento da pena privativa de liberdade “consiste na observação do recluso, sujeito ou não ao isolamento celular, por tempo não superior a 3 (três) meses, com atividades que permitam completar o conhecimento de sua personalidade”. Além disso, houve flexibilização no processo executório, com a instituição dos regimes fechado, semi-aberto e aberto.
Não obstante os notáveis avanços da Lei n.º 6.416/77, com grandes preocupações com a individualização executiva da pena e com a dignidade pessoal do condenado, ela não foi cumprida, de modo geral, pelos sistemas penitenciários nacionais.
Adotou-se então a orientação de deferir à legislação local ou, na sua falta, aos “provimentos do Conselho Superior da Magistratura ou órgão equivalente”, a regulamentação de aspectos fundamentais à boa execução penal, tais como: a) tipos de regimes, com suas transferências e retornos; b) a prisão albergue; c) o cumprimento da pena em prisão da comarca da condenação ou da residência do condenado; d) o trabalho externo; e) a frequência a cursos profissionalizantes, de segundo grau ou superior, fora do estabelecimento e as licenças periódicas para visitar a família, frequentar a igreja e participar de atividades visando a reintegração no convívio social.
(7.2) A reincidência
A Lei n.º 6.416/77 eliminou a dicotomia entre reincidência genérica e reincidência específica. Na redação original do Código Penal de 1940, a reincidência era genérica quando os crimes fossem de natureza diversa, e específica quando da mesma natureza.
Outra grande modificação consistiu em instituir a temporariedade da reincidência, declarando o parágrafo único do art. 46: “Para efeito de reincidência, não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a cinco anos”. Também foi significativa a vedação do reconhecimento da reincidência para a prática de crimes militares ou puramente políticos (art. 47).
(7.3) A suspensão condicional da pena
O sursis, na redação primitiva do Código Penal de 1940, somente era permitido nas hipóteses de condenação à pena de detenção não superior a dois anos, ou de reclusão, se o condenado fosse menor de 21 (vinte e um) anos ao tempo do fato, ou maior de 70 (setenta) ao tempo da condenação (cf. art. 57).
A Lei n.º 6.416/77 eliminou a distinção e permitiu a suspensão condicional da pena de prisão, independentemente de sua natureza (reclusão ou detenção). Entre os pressupostos, o texto reformado admitiu o sursis ainda quando houvesse uma condenação anterior à pena de multa, consagrando a orientação da Súmula n.º 499 do STF.
(7.4) O livramento condicional
No antigo regime, o livramento condicional somente era possível no caso de reclusão ou de detenção superior a 3 (três) anos, além de outros requisitos (art. 60). Se a condenação fosse acima de 2 (dois) e abaixo de 3 (três) anos, o sentenciado não poderia requerer nem o sursis, nem a liberdade condicional.
Esse vazio legislativo chegou a estimular pedidos de revisão criminal (RT 288/198), que, paradoxalmente, não pleiteavam a redução da pena privativa de liberdade mas, ao reverso, o seu aumento, para permitir ao condenado a obtenção do livramento condicional uma vez cumprida mais da metade do tempo da pena, se primário, ou mais de 3/4 (três quartos), se reincidente.
A Lei n.º 6.416/77, superando aquele hiato iníquo, deu nova redação ao caput do art. 60, para declarar que o juiz poderia conceder livramento condicional ao condenado à pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a dois anos, atendidos os demais requisitos.
Outra importante modificação consistiu em não mais submeter o liberado condicional à vigilância da autoridade policial. O novo art. 63 estabelecia que o egresso ficaria sob a observação cautelar e a proteção do serviço social penitenciário, do patronato, do conselho da comunidade ou de entidades similares.
(7.5) A verificação periculosidade
Com o advento da Lei n. 6.416/77, introduziu-se o princípio da identidade física do juiz, embora a regra se limitasse ao assunto da verificação da periculosidade. Como é óbvio, a falta desse generoso princípio no sistema do processo penal caracterizava uma das graves lacunas do ordenamento, com reflexos nocivos para os momentos da decisão da causa e, em caso de condenação, para a correta individualização da pena(4).
A inovação, implantada pelo § 1.º do art. 77, determinava que competia ao juiz que presidisse a instrução, salvo os casos de promoção, remoção, transferência ou aposentadoria, declarar na sentença a periculosidade do réu, valendo-se, para tanto, dos elementos de convicção constantes dos autos ou colhidos mediante diligência que determinasse.
Tal declaração tinha o escopo de autorizar o recolhimento do condenado não perigoso a estabelecimento de regime semi-aberto [desde o início, se a pena não excedesse 8 (oito) anos, ou após cumprido um terço dela em regime fechado, se ultrapassasse aquele limite (CP, art. 30, § 5.º)].
(7.6) A presunção de periculosidade
O art. 78 do Código Penal declarava como portadores da periculosidade presumida: I aqueles que, nos termos do art. 22 (corresponde ao atual art. 26), são isentos de pena; II os referidos no parágrafo único do art. 22 (correspondente ao atual parágrafo único do art. 26); III os condenados por crime cometido em estado de embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, se habitual a embriaguez; IV os reincidentes em crime doloso; V os condenados por crime que hajam cometido como filiados a associação, bando ou quadrilha de malfeitores.
E o §1.º daquela regra dispunha que a presunção de periculosidade não prevaleceria quando a sentença fosse proferida 10 (dez) anos depois do fato, no caso do n.º I (doentes mentais ou portadores de desenvolvimento mental incompleto ou retardado), ou 5 (cinco) anos nos demais casos.
A Lei n.º 6.416/77 introduziu o § 1.º ao art. 78, com a seguinte redação: “A presunção de periculosidade não prevalece se, entre a data do cumprimento ou extinção da pena e o crime posterior, tiver decorrido período de tempo superior a dez anos, no caso do n. I deste artigo, ou de cinco anos, nos outros casos”. A nova redação, dispondo sobre a temporariedade da presunção, visou a categoria dos reincidentes em crime doloso (art. 78, IV).
(7.7) Extinção da punibilidade (casamente da ofendida com terceiro)
A Lei n.º 6.416/77 estabeleceu uma nova causa extintiva da punibilidade para os crimes contra os costumes: o casamento da ofendida com terceiro, salvo duas exceções: a) se o ilícito fosse cometido com violência ou grave ameaça; b) se a ofendida não requeresse o prosseguimento da ação penal no prazo de 60 (sessenta) dias, contados da data da celebração (art. 108, IX).
A nova regra atendeu à Súmula 388 do STF, que, embora cancelada por ocasião do julgamento do RHC n.º 53.777 (RTJ 83/775), foi aproveitada pelos legisladores das reformas de 1977 e de 1984.
(7.8) A prescrição
A Súmula 146 do STF dispõe: “A prescrição da ação penal regula-se pela pena concretizada na sentença, quando não há recurso da acusação”. Aquela orientação visou pacificar a jurisprudência no sentido de se aplicar retroativamente o parágrafo único do art. 110, que, na redação original do Código Penal, dispunha: “A prescrição, depois de sentença condenatória de que somente o réu tenha recorrido, regula-se também pela pena imposta e verifica-se nos mesmos prazos”.
A Lei n.º 6.416/77 substituiu o parágrafo único por dois outros, com as seguintes redações: “§ 1.º A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação, regula-se, também, pela pena aplicada e verifica-se nos mesmos prazos.
§ 2.º A prescrição, de que trata o parágrafo anterior, importa, tão-somente, em renúncia do Estado à pretensão executória da pena principal, não podendo, em qualquer hipótese, ter por termo inicial data anterior à do recebimento da denúncia”.
A partir de então, a doutrina e a jurisprudência passaram a distinguir mais claramente dois tipos de prescrição: a) a prescrição da pretensão punitiva, também chamada de prescrição da ação penal; b) a prescrição da pretensão executória, isto é, prescrição da condenação.
(7.9) Nova hipótese de perdão judicial
Foi a Reforma de 1977 que trouxe uma nova e humanitária causa de perdão judicial e que se mantém até os dias correntes. Ela se caracteriza nas hipóteses de homicídio e de lesões corporais culposas: CP, arts. 121, § 5.º e 129, § 8.º, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.
Notas:
(1) A mencionada proposta, elaborada por Roberto Lyra (1902-1982), foi designada de anteprojeto de Lei de Execuções Penais.
(2) Alterado pela Lei n.º 6.016/73, publicado mas com início de vigência prorrogado.
(3) Em Revista de Direito Penal, direção de Heleno Cláudio Fragoso, secretaria de Nilo Batista, São Paulo: edição RT, n.º 17/18, jan.-jun.1975, p. 131/133.
(4) Atualmente, por força da Lei n.º 11.719/2008, referido princípio consta expressamente no art. 399, § 2.º, do Código de Processo Penal.
René Ariel Dotti. Advogado e professor universitário, foi corredator dos anteprojetos projetos de reforma da Parte Geral do
Código Penal e da Lei de Execução Penal.