A reforma e os soldadinhos

O mínimo que se pode dizer da frustração e da cobrança dos que esperavam mais do governo Luiz Inácio Lula da Silva, mesmo considerando o fato de que sete meses passaram sem um feito digno de nota a comemorar, é que dirigente algum poderia – em situação como a brasileira – desatar a curtíssimo prazo os intricados nós deixados pelo mandatário anterior. Afinal, FHC teve tempo de sobra, oito anos, mas saiu do governo sem realizar nenhuma das reformas institucionais que o País há muito tempo reclama, além de ter legado ao sucessor uma mixórdia econômica só comparável ao efeito devastador de um ciclone.

É desfaçatez acusar de fracassado o atual presidente, sem levar em conta a enormidade da tarefa que é o desmonte de um Estado erigido sob a égide do cartorialismo. Dos 503 anos de história do Brasil, 322 anos foram de exploração colonial, 65 anos sob a monarquia dos Bragança e, em torno de 116 anos no regime republicano, imenso período marcado por concessões, licenças, favorecimentos, capitanias hereditárias e sesmarias, que acabou gerando uma das situações de desequilíbrio social mais perversa do globo. Algumas das mazelas vividas pela banda mais pobre da sociedade, derivam do pensamento que originou a classe dominante do País, aliás inaugurado no dia em que frei Henrique rezou a primeira missa diante de embasbacados tupinambás.

Lula ainda deverá sofrer outras acusações, embora tenha mostrado a grande coragem de encaminhar ao Congresso os projetos de reforma da Previdência e do sistema tributário. Por isso colhe, de todos os lados, manifestações de hostilidade e repúdio das corporações que se julgam prejudicadas. E num cenário em que todos os setores da economia esperneiam, sobram pouquíssimos que não têm do que se queixar. Portanto, causa engulhos ouvir certa gente nutridade pelo neoliberalismo, cabisbaixa diante da afronta que deixou servidores sem reajustes por oito anos, entregou o patrimônio público ao capital internacional e favoreceu os muito ricos, reclamar do governo que tem apenas meio ano, fazer em tão pouco tempo que historicamente foi surrupiado da nação. O que essa gente precisa é de quantidades industriais de semancol.

Bate-se em Lula porque o Fome Zero, uma de suas tentativas mais louváveis e promissoras, não deslanchou, mas se despreza o peso que tem a evidência de que os 50 milhões de miseráveis que clamam por comida, não são originários do processo de geração espontânea.

Se os resultados do programa de combate à fome ainda não são mensuráveis, sobretudo porque ação dessa abrangência requer o emprego de máquina que funcione, na prática, como um exército treinado para a guerra, e isso demora, seria oportuno saber por que os governos anteriores foram incapazes de melhorar a qualidade do ensino, saúde, segurança, habitação popular, rodovias, além de atender comezinhos deveres do ofício de governar. Exemplos: combater a sonegação, contrabando, pirataria, nepotismo, enfim, o jogo de cartas marcadas e a ação entre amigos.

Aliás, o Fome Zero foi sucedido na pauta da imprensa, superado pelo recrudescimento da ação assaz disciplinada e, suficientemente conhecida, dos membros do MST. Na verdade, além das reformas, o governo enfrenta o complicadíssimo problema da distribuição da terra, enorme quisto encravado no tecido social da República, cujo tratamento paliativo das últimas três décadas nada mais fez que mascarar o adiantado estágio da enfermidade, que ameaça o paciente com um sofrimento amargo e prolongado.

É inimaginável supor que se possa resolver em poucos meses assunto tão explosivo quanto a reforma agrária. Assim como não se pode esquecer que os presidentes que antecederam o atual, nesse quesito resolveram aplicar a tática do avestruz e ficaram devendo as soluções devidas à gravidade da questão. Sarney bem que tentou ao criar ministério específico, ao qual negou força política. Sem mais, limitou-se a assistir o fim melancólico da pasta que se enredou numa sucessão de patacoadas.

Nesse momento, quando o MST prossegue com maior desenvoltura a ação para o qual foi criado, diante dos entraves burocráticos e exigências institucionais que o aparelho de Estado não pode contornar com a rapidez que lhe é exigida, e por outro lado, em face da base ideológica do governo, organizações como a TFP e a UDR ultimamente em silêncio, sentem-se motivadas a problematizar o debate ao bradarem contra a ameaça de conturbação da ordem, sanha demoníaca atribuída aos trabalhadores que lutam pela terra.

A TFP, organização católica laica que há anos evitou fazer aparições públicas, quem sabe confortável pela leniência oficial com a reforma agrária, sem marchas, estandartes e palavras de ordem, discretamente, está nas ruas. Soldadinhos de Plínio Corrêa de Oliveira, facilmente identificados pelas jaquetas e cabelo no estilo militar, surgem nas esquinas para distribuir o folheto “Cavalgando a Reforma Agrária, a `esquerda católica’ ameaça o Brasil”.

Os argumentos são iguais aos do início dos anos 60, quando se opunham a João Goulart, a quem chamam de paracomunista. FHC é esquerdista, ao passo que Lula, estranhamente, não foi desa fez qualificado pelos enciclopedistas da Rua Martinico Prado (SP), sede nacional da entidade. Todavia, por via oblíqua, lamenta-se sua condescendência com o desembarque na administração federal da tropa de choque da esquerda católica, praga que a TFP hoje considera mais letal que a ideologia intrinsecamente má dos antigos comedores de criancinhas.

O folheto não poupa “elogios” aos bispos Mauro Morelli e Tomás Balduíno, aos ministros Miguel Rossetto e José Graziano, e aos militares da CPT, MST e Contag nomeados para funções importantes no próprio Incra. A maior dose de ressentimento, porém, é reservada a frei Betto, apresentado como “homem-chave da esquerda católica”, no Planalto e julgado “por seu passado ligado a guerrilheiros e terroristas, e também aos sandinistas da Nicarágua”.

Um dos trechos diz que “o famigerado MST explodiu das entranhas da CPT (Comissão Pastoral da Terra) e que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) tem sido a mais alta instância episcopal a pregar constantemente a reforma agrária socialista e confiscatória”. Ademais, o documento coloca em plano de igualdade colaboracionista CPT, MST e Farc, sem desprezar os zapatistas. Alertando para o risco de conflito armado no campo, a TFP adverte que a violência fará a produção despencar e, com isso, “os maiores prejudicados serão exatamente os mais pobres e necessitados, sempre os primeiros atingidos em situações de fome e carestia”.

Contudo, esse tom aparentemente piedoso contrasta com a condenação explícita antes desferida ao ministro José Graziano, cuja intenção é doar parte do alimento arrecadado pelo Fome Zero aos acampamentos do MST. Destarte, a entidade estabelece diferentes categorias de famintos, os com e sem direito de comer. E mais: a defesa dos pobres e necessitados, louvável sob todos os aspectos, não escamoteia o realismo cru dos fatos: “E se a violência prosperar, serão eles também suas primeiras vítimas, porque mais indefesos e humildes”.

A declaração é suficiente para borrar a hermenêutica dos oponentes da reforma agrária, que outro dia desancaram João Pedro Stédille pela alusão à proporção numérica entre proprietários e sem-terra. A TFP também sabe de que lado estão as armas.

O laudatório esforço longe de rotular o presidente, alça-o à posição de paladino e nele deposita a crença num surto de tardio sebastianismo: “Livrai o Brasil da esquerda católica no poder, livrai-nos da teologia da libertação”. E como quem tira castanhas do fogo, desenvolve raciocínio tão preconceituoso quanto risível: “… foram reivindicações agrorreformistas do tipo das que faz a CPT, que constituíram um dos fatores mais centrais para que o presidente Chávez, na Venezuela, visse crescer, do dia para a noite, uma enorme oposição a seu governo. A persistência agrorreformista pode levar o país vizinho ao caos”. Magister dixit.

Ivan Schmidt

é jornalista e escritor.

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