A Reforma do Código de Processo Penal -­ Provas (I)

A Lei n.º 11.690/2008, que entrará em vigor no dia 11 de agosto de 2008(1), alterou alguns dispositivos do Código de Processo Penal relativos à prova, além de outros, como veremos a seguir.

Permanecemos, como não poderia ser diferente, com o sistema do livre convencimento fundamentado, pois diz o novo art. 155 que o “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.” (grifo nosso).

Lamentavelmente acrescentou-se o advérbio exclusivamente que não constava do texto do anteprojeto entregue ao Ministério da Justiça pela Comissão presidida por Ada Pelegrini Grinover e que deu origem ao Projeto de Lei n.º 4.205/2001(2).
Se é verdade que a expressão “prova produzida em contraditório judicial” fortalece a exigência constitucional da observância do devido processo legal, o certo é que o acréscimo do referido advérbio de exclusão fez cair por terra o que desejavam os autores do anteprojeto.

Ao prescrever que o Juiz não pode fundamentar a sua decisão exclusivamente nos atos investigatórios, a contrario sensu, defere-se ao Magistrado a possibilidade de motivar a sua sentença com base em alguns elementos informativos colhidos na investigação (ainda que não todos), o que é uma afronta à Constituição Federal. A lei deveria sim proibir categoricamente a utilização de quaisquer elementos informativos adquiridos na primeira fase da persecutio criminis, salvo, evidentemente, as provas irrepetíveis, antecipadas e produzidas cautelarmente.
Como se sabe, na fase investigatória, que é inquisitiva, não se permite o exercício pleno do contraditório, nem tampouco a ampla defesa o que macula qualquer decisão tomada com base em elementos colhidos naquela fase anterior. Assim, salvo as ressalvas feitas pela lei (as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas), aliás, perfeitamente compreensíveis, os atos investigatórios produzidos na peça informativa devem ser repetidos para que valham como meios de prova idôneos para o julgador(3).

Ressalve-se que tais provas irrepetíveis, cautelares e antecipadas devem se submeter, quando possível, ao contraditório prévio e ser produzidas na presença de um Juiz de Direito, do Ministério Público e de um defensor (seja dativo ou constituído), salvo absoluta impossibilidade, como no caso da realização urgente de um exame de corpo de delito; nesta última hipótese, difere-se o contraditório para a fase judicial.

Prova irrepetível é aquela que não pode mais ser reproduzida em Juízo, em razão, por exemplo, de terem desaparecidos os vestígios do crime, o que impossibilitará a realização de um novo exame de corpo de delito (ressalvando-se, como dito, a possibilidade de contestação do laudo pericial realizado, mesmo porque, segundo o art. 182 do Código de Processo Penal, não se trata de um meio de prova de idoneidade absoluta); outro exemplo é o depoimento da vítima prestado durante o inquérito policial, quando esta já tenha falecido na época da instrução criminal.
No art. 225 do Código de Processo Penal temos um exemplo de prova antecipada: “Se qualquer testemunha houver de ausentar-se, ou, por enfermidade ou por velhice, inspirar receio de que ao tempo da instrução criminal já não exista, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, tomar-lhe antecipadamente o depoimento”. Neste caso, a ouvida de uma “testemunha de defesa” antes de uma “de acusação”, invertendo-se a ordem determinada pelo Código (art. 400 com a redação dada pela Lei n.º 11.719/08) e exigida pelo princípio do contraditório, não gerará nulidade, desde que a providência tenha sido realmente imprescindível.

Como prova de natureza cautelar, cita-se a busca e apreensão disciplinada nos arts. 240 e seguintes do Código de Processo Penal, com as ressalvas feitas em alguns daqueles dispositivos, a saber: art. 240, § 1.º, f (cfr. art. 5.º, XII da Constituição Federal), art. 241 (quando dispensa a expedição de mandado), art. 242 (ordem determinada de ofício pelo Juiz, ferindo o sistema acusatório). Obviamente que como toda medida cautelar, deve-se atentar para os seus conhecidos pressupostos (periculum in mora e fumus commissi delicti), sem os quais será ela incabível e, por conseguinte, não valerá para subsidiar uma sentença. Ademais, tais provas devem ser aquelas “consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida”, segundo complementa o novo art. 156, I.

O parágrafo único do art. 155 prescreve, tal como conhecíamos, que “somente quanto ao estado das pessoas serão observadas as restrições estabelecidas na lei civil”; a propósito, já ensinava Câmara Leal que “a prova do estado das pessoas fica subordinada às regras civis para sua produção”(4), como no casamento, a idade, filiação, etc. Aliás, exatamente por isso, quando se trata de questão prejudicial relativa ao estado civil das pessoas, o Juiz da ação penal deve deixar a solução da controvérsia para o Juiz Cível, pois se trata de uma “questão prejudicial de devolução obrigatória” (art. 92 do Código de Processo Penal). Na verdade, como explica Antonio Scarance Fernandes, “o que é obrigatória ou facultativa é a suspensão do processo em face da existência de prejudicial”(5).

O novo art. 156 repete, em parte, o atual, ao dizer que “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer”, facultando-se, porém, ao Juiz, de ofício o seguinte:
“I ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; “II determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante”.

Lamentavelmente continua o nosso Código de Processo Penal estabelecendo uma regra só aplicável para os processos cíveis, qual seja a de caber o ônus da prova a quem alega. Tal disposição é absolutamente inaplicável em processo penal, onde o ônus da prova é sempre da acusação, em razão dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo. Estabelecer simples e categoricamente que “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer”, repetindo o Código de Processo Civil (art. 333, I e II), é fazer tábula rasa do referido princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5.º, LVII da Constituição Federal).

Aliás, encontramos na jurisprudência uma ou outra decisão que faz recair o ônus da prova sobre os ombros da acusação, ainda que a defesa alegue algum fato impeditivo, modificativo ou extintivo. Neste sentido, por exemplo, esta decisão do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região: “Cabe à acusação, preleciona o jurista Fernando da Costa Tourinho Filho, ´provar a existência do fato e demonstrar sua autoria. Também lhe cabe demonstrar o elemento subjetivo que se traduz por dolo ou culpa. Se o réu goza de presunção de inocência, é evidente que a prova do crime, quer a parte objecti, quer a parte subjecti, deve ficar a cargo da acusação” (Processo Penal. 14.ª ed. Saraiva: São Paulo, 1993. v. III, p. 213). Assim, não tendo o Ministério Público Federal arcado com o ônus material de provar a imputação penal atribuída ao réu na denúncia, encargo que lhe é conferido pelo art. 156, 1.ª parte, do CPP, deve ser reformada a r. sentença condenatória em relação aos crimes dos arts. 334, § 1.º, alínea “c”, e 288, ambos do CP.” (Apelação n.º 2005.04.01.009927-8).

No mesmo sentido, decidiu-se no Tribunal Regional Federal da 2.ª Região: “Necessidade de se harmonizar as regras do ônus da prova com o princípio processual penal do in dubio pro reu, diante do qual resta que não faz sentido exigir que o próprio acusado prove que não praticou o crime, ônus esse que cabe ao Estado, demonstrando que o agente efetivamente violou o tipo penal.” (Apelação n.º 2002.50.01.005932 9).

Mesmo no Superior Tribunal de Justiça, como se observa do julgado a seguir transcrito: “Habeas Corpus n.º 27.684 -Relator: Min. Paulo Medina: (…) O órgão acusador tem a obrigação jurídica de provar o alegado e não o réu demonstrar sua inocência. 2. É característica inafastável do sistema processual penal acusatório o ônus da prova da acusação, sendo vedado, nessa linha de raciocínio, a inversão do ônus da prova, nos termos do art.1 56 do Código de Processo Penal. 3. Carece de fundamentação idônea a decisão condenatória que impõe ao acusado a prova de sua inocência, bem como ignora documento apresentado pela Defesa a teor dos artigos 231 e 400 do Código de Processo Penal.” Do voto lê-se: “(…) Estarrecido estou com o teor do decreto condenatório, porquanto o trecho transcrito corresponde à integralidade da fundamentação. Nada mais há; sequer uma só referência à prova produzida pelo órgão ministerial, seja quanto aos fatos objetivamente considerados, seja com relação ao elemento subjetivo do tipo, ou seja, o intuito de fraudar. Não houve qualquer apreciação das provas produzidas pela acusação para firmar o juízo condenatório, mas, ao contrário, afirmou-se que não logrou o acusado provar inverídicos os fatos a ele imputados, numa inaceitável inversão do ônus da prova ao presumir, juris tantum, como verdadeira a narrativa do Parquet, incumbindo ao réu o dever de desconstituir tal presunção. É notório que o órgão acusador tem a obrigação jurídica de provar o alegado e não o réu demonstrar sua inocência. É característica inafastável do sistema processual penal acusatório, como retratado no art. 156 do Código de Processo Penal. Nesse sentido, afirma AFRÂNIO SILVA JARDIM: “O réu apenas nega os fatos alegados pela acusação. Ou melhor, apenas tem a faculdade de negá-los, pois a não impugnação destes ou mesmo a confissão não leva a presumi-los como verdadeiros, continuando eles como objeto de prova de acusação. Em poucas palavras: a dúvida sobre os chamados fatos da acusação leva à improcedência da pretensão punitiva, independentemente do comportamento processual do réu. Assim, o ônus da prova, na ação penal condenatória é todo da acusação/ e relaciona-se com todos os fatos constitutivos do poder-dever de punir do Estado/,afirmado na denúncia ou queixa; conclusão esta que harmoniza a regra do art. 156, primeira parte, do Código de Processo Penal com o salutar princípio in dubio pro reo.” (Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 214)”.
Esta decisão do Superior Tribunal de Justiça traduz perfeitamente a idéia de que o Processo Penal é, antes de tudo, “um sistema de garantias face ao uso do poder do Estado.” Para Alberto Binder, por meio do Processo Penal “procura-se evitar que o uso deste poder converta-se em um fato arbitrário. Seu objetivo é, essencialmente, proteger a liberdade e a dignidade da pessoa”(6).
Atentemos, outrossim, para a lição do mestre argentino Julio Maier, segundo a qual “la carga de la prueba de la inocencia no le corresponde al imputado o, de otra manera, que la carga de demonstrar la culpabilidad del imputado le corresponde al acusador y, también, que toda la teoria de la carga probatória no tiene sentido en el procedimiento penal. (…) El imputado no tiene necessidad de construir su inocencia, ya construida de antemano por la presunción que lo ampara, sino que, antes bien, quien lo condena debe destruir completamente esa posición, arribando a la certeza sobre la comisión de un hecho punible”(7).
Concordamos também com Alexandre Bizzotto e Andreia de Brito Rodrigues, que “na persecução penal, todo ônus probatório é da acusação”(8).

Notas:

(1)     A lei foi publicada no Diário Oficial da União do dia 10 de junho de 2008, entrando em vigor 60 dias depois de oficialmente publicada, na forma do art. 3.º da mesma lei. Segundo o art. 8.º da Lei Complementar n.º 95, “A vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula “entra em vigor na data de sua publicação” para as leis de pequena repercussão.” Pelo seu § 1.º “a contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subseqüente à sua consumação integral.” (Grifamos).

(2)     Sobre a reforma do Código de Processo Penal e os demais projetos de lei, veja-se o que comentamos em nosso Direito Processual Penal, Salvador: Editora JusPodivm, 2007.

(3)     Sobre o valor probatório dos atos investigatórios produzidos no inquérito policial, veja-se o nosso Direito Processual Penal, Salvador: Editora JusPodivm, 2007.

(4)     Comentários ao Código de Processo Penal Brasileiro, Vol. I, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1942, p. 429.

(5)     “Prejudicialidade”, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 89 (obra já esgotada).

(6)     Introdução ao Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 25, na tradução de Fernando Zani.

(7)     Derecho Procesal Penal Fundamentos Tomo I, Buenos Aires: Editores del Puerto, 2.ª ed., 1999, p. 507.

(8)     Nova Lei de Drogas, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 139.

Rômulo de Andrade Moreira é procurador de justiça na Bahia. Foi assessor especial do procurador-geral de justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex-procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). É coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador-UNIFACS (Curso coordenado pelo Professor J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático. Integrante, por duas vezes consecutivas, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação da Universidade Federal da Bahia, do Curso JusPodivm, do Curso IELF, da Universidade Jorge Amado e da Fundação Escola Superior do Ministério Público. Autor das obras Direito Processual Penal, Comentários à Lei Maria da Penha (em co-autoria) e Juizados Especiais Criminais Editora
JusPodivm, 2008, além de organizador e coordenador do livro Leituras complementares de Direito Processual Penal, Editora JusPodivm, 2008. Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados na Bahia e no Brasil.

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