Os efeitos desta decisão do Supremo Tribunal Federal começaram a ser sentidos nas instâncias inferiores. No dia 17 de agosto de 2007, a 3.ª Vara Criminal de São Paulo cancelou seis tele-audiências de supostos envolvidos com a organização criminosa do Primeiro Comando da Capital (PCC). O depoimento dos oito réus presos suspeitos de participar e comandar três ondas de ataques criminosos na cidade de São Paulo estava marcado para esta sexta-feira, no Plenário 7 do Fórum Criminal da Barra Funda. No começo da sessão, a juíza Mônica Sales pediu que os advogados das partes se manifestassem sobre a conveniência do depoimento por vídeo.Os advogados de seis réus sustentaram que o direito de defesa de seus clientes estaria prejudicado, já que não poderiam orientá-los de forma precisa. A juíza acolheu o argumento e mandou expedir carta precatória para ouvir os acusados. “A videoconferência, apresentada sob o manto da modernidade e da economia, revela-se perversa e desumana, pois afasta o acusado da única oportunidade que tem para falar ao seu julgador. Pode ser um enorme sucesso tecnológico, mas configura-se um flagrante desastre humanitário”, defende o advogado criminalista Luiz Flávio Borges D’Urso, então Presidente da OAB paulista. A juíza Mônica Sales não era obrigada a seguir a decisão do Supremo Tribunal Federal, porque o entendimento se aplicou apenas ao pedido de Habeas Corpus julgado pela 2.ª Turma. Mas, para evitar que futuramente todos os atos processuais pudessem ser anulados, quando os recursos deste processo começassem a chegar ao Supremo, seguiu a orientação(32).
Sempre posicionamo-nos contrariamente ao interrogatório on line, à distância ou por videoconferência. Desde a primeira edição do nosso “Direito Processual Penal”, em 2003(33), escrevemos contrariamente a esta prática que então se iniciava no País. Participamos de vários debates, opondo-nos insistentemente àqueles que apregoavam as vantagens da iniciativa. As razões eram e são várias.
De toda maneira, prefere-se a videoconferência para ouvir uma testemunha ou ofendido que a realização de uma audiência de instrução sem a presença física do acusado.
Por fim, a lei ora comentada modificou o art. 386 do Código de Processo Penal, dando nova redação aos incisos IV (estar provado que o réu não concorreu para a infração penal), V (não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal), VI (existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20, 21, 22, 23, 26 e § 1.º do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência) e VII (não existir prova suficiente para a condenação).
Como se sabe, a fundamentação e a conclusão de uma sentença absolutória têm efeitos civis, especialmente na chamada ação civil ex delicto(34), pois, apesar da responsabilidade civil ser independente da criminal, não se pode questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal. É o que dispõe o Código Civil (art. 935).
Esta disposição do Código Civil se justifica plenamente, a fim que se evitem decisões absolutamente discrepantes, em evidente prejuízo para a ordem jurídica.
Não seria admissível atestar-se em um processo que alguém praticou um delito e, sob o mesmo sistema jurídico, afirmar-se o contrário em outro processo ou, como bem diz Washington de Barros Monteiro, “decidir-se na justiça penal que determinado fato ocorreu e depois, na justiça civil, decidir diferentemente que o mesmo não se verificou”.
Para este civilista “repugna conceber que o Estado, em sua unidade, na repressão de um fato reputado como ofensivo da ordem social, decida soberanamente, por um de seus órgãos jurisdicionais, que esse fato constitui crime, que seu autor é passível de pena e o condene a sofrer o castigo legal; e que esse mesmo Estado, prosseguindo na repressão do fato antijurídico, venha a declarar, por outro ramo do Poder Judiciário, que ele não é delituoso, que é perfeitamente lícito, que não acarreta responsabilidade alguma para seu autor, que não está assim adstrito ao dever de compor os danos a que deu causa”(35).
Bem antes, João Monteiro já indagava: “Que papel representaria o Poder Público, se o mesmo crime pudesse existir e não existir, ou se X fosse e não fosse o autor de determinado crime?”(36).
Assim, absolvido com base no inciso IV, a sentença penal terá ressonância na esfera cível, o que não ocorrerá se o decreto absolutório fundar-se nos novos incisos V e VII, mesmo porque pode não ter existido no juízo penal prova suficiente da autoria ou para uma condenação e, no juízo cível, tal prova vir a ser conseguida. Lembre-se do brocardo aplicado no Processo Penal do in dubio pro reo.
O novo inciso VI (que também passou a privilegiar na segunda parte o princípio do in dubio pro reo) guarda estreita relação com o disposto no art. 65 do Código de Processo Penal, segundo o qual “faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito”.
Por sua vez, tais disposições processuais penais estão complementadas pelo disposto nos arts. 188, 929 e 930 do Código Civil, in verbis:
“Art. 188. Não constituem atos ilícitos:
“I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;
“II – a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente.
“Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.”
“Art. 929 – Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram.
“Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado.
Vê-se, portanto, que o sistema adotado pelo Brasil reconhece a independência entre o Juízo cível e o penal, ressalvando, no entanto, que quanto à autoria e à existência do delito prevalece o decidido categoricamente no juízo criminal (art. 935 do Código Civil), bem como no que se refere às causas excludentes de ilicitude ou de isenção de pena; exatamente por isso, o parágrafo único do art. 64 “faculta” ao Juiz da ação civil suspender o curso do respectivo processo, até que se decida definitivamente a ação penal(37).
“Realmente, o conflito entre sentenças que apreciam o mesmo fato, uma negando e a outra afirmando a sua existência, uma recusando a autoria do delito e a outra aceitando-a, criaria uma situação de contundente extravagância. Inclinou-se a doutrina, por isso, para a conclusão de Merlin, negando-lhe os fundamentos. A decisão proferida no Juízo criminal tranca o Juízo civil toda vez que declarar inexistente o fato imputado ou disser que o acusado não o praticou. Quando, porém, como bem esclareceu Mendes Pimentel “a absolvição criminal teve motivo peculiar ao direito ou ao processo penal, como a inimputabilidade do delinqüente ou a prescrição da ação penal, a sentença criminal não obsta ao pronunciamento civil sobre a reparação do dano’”(38).
Observa-se, contudo, que a inexistência material do fato deve ser reconhecida categoricamente, sob pena de não vincular a decisão cível. Di-lo o art. 66 do Código de Processo Penal: “Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato”.
Por fim, o inciso II do parágrafo único do art. 386, consentâneo com a Parte Geral do Código Penal, que desde 1984 acabou com as penas acessórias, passou a estabelecer que o Juiz de Direito, na sentença absolutória, deverá ordenar “a cessação das medidas cautelares e provisoriamente aplicadas.”
Para terminar as nossas conclusões, asseveramos que ainda falta muito trabalho para que o nosso Código de Processo Penal ajuste-se aos princípios da Constituição Federal, especialmente quando se trata do devido processo legal, sistema acusatório, etc. Maiores considerações a este respeito tecemos em nosso livro antes mencionado, quando abordamos de forma geral a reforma do Código de Processo Penal, bem como, mais especificamente, os projetos de lei ainda em tramitação no Congresso Nacional.
Notas:
(32) Fonte: Revista Consultor Jurídico, 18 de agosto de 2007. Antes da decisão do Supremo Tribunal Federal, e por fundamento diverso, a 7.ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região considerou nulo o depoimento por videoconferência de uma testemunha que estava nos Estados Unidos, em processo que tramitava na 2.ª Vara Federal Criminal de Curitiba. A defesa impetrou um habeas corpus no TRF, em Porto Alegre, pedindo a suspensão da audiência on-line após ter sido marcada pela justiça. Os advogados alegaram que essa forma de depoimento não estaria prevista em lei, que não foram avisados do local onde estaria a testemunha no país estrangeiro, que nenhum ato processual poderia ser realizado sem a presença da defesa e que existiria risco de manipulação da testemunha pela acusação. O relator do processo no tribunal, Desembargador Federal Néfi Cordeiro, após analisar o habeas corpus, concluiu que o Código de Processo Penal, ainda que não fale da modalidade de colheita de prova on-line, visto que foi redigido antes do desenvolvimento dessa tecnologia, admite a realização de qualquer meio de prova não vedado por lei.
“Pessoalmente, penso que, inobstante as restrições trazidas pela doutrina, são tão grandes as vantagens do uso da tecnologia para a oitiva à distância e tão possíveis de controle os pequenos riscos, que esse meio de prova tenderá a cada vez mais ser utilizado”, declarou Cordeiro. Para o Magistrado, a ilegalidade ocorreu quando o ato foi realizado sem que fosse oportunizada a presença dos advogados no local. “A realização de audiência para inquirição de testemunha, sem que os réus e seus advogados tenham sido corretamente intimados, viola o princípio da ampla defesa”, disse Cordeiro. O desembargador frisou que a anulação do depoimento como prova não foi devido à sua realização on-line, observando, inclusive, que no TRF já existe norma administrativa autorizando o uso da videoconferência. A turma concordou que a audiência on-line é viável, desde que o ato seja realizado em local seguro, previamente acordado com as autoridades do Estado requerido e comunicado às partes do processo, para que os advogados possam estar presentes na sala de audiências junto ao juiz ou na sala em que a testemunha é ouvida. Os desembargadores decidiram, por unanimidade, confirmar a liminar que concedeu parcialmente a ordem, permitindo que o ato seja repetido por meio de videoconferência, desde que previamente combinado pelas partes. (HC 2005.04.01.026884-2/PR).
(33) Já na segunda edição, Salvador: Editora JusPodivm, 2007.
(34) Sobre o assunto, mais uma vez remetemos o leitor ao que escrevemos em nosso Direito Processual Penal, Salvador: Editora JusPodivm, 2007.
(35) Curso de Direito Civil, Vol. V, Direito das Obrigações, 2.ª Parte, 27.ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 403
(36) Apud Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo Penal, Vol. II, 20.ª ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p. 28
(37) Entendemos que este poder se traduz em verdadeiro dever, ou seja, o Juiz cível, ao invés de poder, deve suspender o curso do processo. Como ensina Maximiliano, “ater-se aos vocábulos é processo casuístico, retrógrado. Por isso mesmo se não opõe, sem maior exame, pode a deve, não pode a não deve. Se, ao invés do processo filológico de exegese, alguém recorre ao sistemático e ao teleológico, atinge, às vezes, resultado diferente: desaparece a antinomia verbal, pode assume as proporções e o efeito de deve”. (cfr. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 7.ª ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 336). Assim também pensa Tourinho Filho, ao afirmar com propriedade: “A faculdade que o parágrafo único do art. 64 do CPP concede ao Juiz da ação civil de suspender a instância desta, até que seja definitivamente julgada a ação penal proposta contemporaneamente com aquela, torna-se uma obrigação, pois que o Juiz, velando pelo decoro da Justiça, terá de evitar o conflito de decisões díspares, baseadas em um mesmo fato e na mesma ação antijurídica. E, para evitar essas conseqüências desastrosas, pelo atrito de julgados irreconciliáveis, a faculdade se há de converter em obrigação”. (cfr. ob. cit., p. 36).
(38) Orlando Gomes, Curso de Direito Civil, Obrigações., p. 352.
Rômulo de Andrade Moreira é procurador de Justiça na Bahia. Professor de Direito
Processual Penal da Universidade Salvador-Unifacs, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Autor das obras “Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei Maria da Penha” (em co-autoria) e “Juizados Especiais Criminais” Editora JusPodivm, 2008, além de organizador e coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, Editora JusPodivm, 2008.