Em substituição ao Decreto-Lei 7.661/1945 surgiu a Lei 11.101/2005 que veio regular a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária.

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Estudos demonstram que na vigência da lei anterior, das empresas que buscavam socorro na concordata judicial, somente 17% se recuperavam, enquanto as restantes 83% acabavam falindo. E o que é pior, na maioria das vezes, o valor arrecadado com a venda dos bens da falida não era suficiente sequer para pagar as dívidas trabalhistas e tributárias, e quem perdia com isso eram os demais credores, em especial a grande massa de credores quirografários.

Seguindo a tendência do Novo Código Civil, a preocupação principal da nova lei é a preservação da empresa, fundamentada na sua função social. No entanto, mesmo assim, no tocante à recuperação judicial ainda permanece existente um grande obstáculo ao sucesso da recuperação das empresas, em face do contido no artigo 57 na Lei 11.101/2005, que prevê:

?Art. 57. Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembléia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional.?

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É que a maioria das empresas que passa por dificuldades econômicas e, portanto, busca sua recuperação judicial, possui dívidas com a Fazenda, seja ela, municipal, estadual ou federal. Por isso, para o devedor é praticamente impossível apresentar certidões negativas de débitos tributários.

Enquanto não surgir legislação regulamentando parcelamento de débitos fiscais em condições mais favoráveis que as atuais, caberá ao Poder Judiciário decidir em cada caso se concede ou não a recuperação judicial ao devedor que não cumprir o disposto no art. 57 da referida lei.

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Esse ponto tem sido motivo de grande debate entre os especialistas na matéria. Em nosso entender, poderá o Juiz deferir a recuperação judicial para o devedor que não apresentar as certidões negativas de débitos fiscais, fundamentado nos princípios constitucionais.

É que o sistema jurídico brasileiro é fundamentado em princípios, que introduzem valores relevantes no próprio sistema, influindo vigorosamente sobre a orientação de setores da ordem jurídica. Em razão disso, muitas vezes são ?superiores? às regras jurídicas, pois, estando no topo do ordenamento jurídico e servindo como norteadores da interpretação das leis, eles servem como forma de solucionar litígios quando não forem encontradas normas específicas para aplicação a determinado caso concreto ou mesmo em conjunto com essas normas, imprimindo-lhes determinado significado.

O princípio tem caráter de norma, e uma de suas características é seu dinamismo, pois atualmente o direito encontra-se mais do que nunca em constante evolução e muitas vezes a lei é retrógrada para garantir o direito da parte, levando o juiz a buscar embasamento para sua decisão nos princípios, por serem normas jurídicas fundamentais do direito.

A utilização dos princípios como fundamento de decisões judiciais vem crescendo dia a dia. Neste sentido é que Nelson Nery Júnior (Princípios do processo civil na CF, p. 23.) nos afirma que os princípios ?existem e devem ser preservados: sua incidência é que tem sofrido e deverá continuar sofrendo adaptações, dependendo do grau de desenvolvimento jurídico que os adote.?

E exatamente neste sentido, de utilizar princípios como fundamento de decisões judiciais, que o juiz Luiz Henrique Miranda, da 1.ª Vara Cível da Comarca de Ponta Grossa, Estado do Paraná, proferiu uma das primeiras decisões no país senão a primeira -, deferindo a recuperação judicial de uma madeireira (sentença proferida nos autos 390/2005, de Recuperação Judicial proposta por W.P.I.C.L., em 02.12.2005), sem que a mesma tivesse apresentado as certidões negativas de débitos tributários, conforme exigência contida no art. 57, da Lei 11.101/2005.

E a decisão, muito bem fundamentada, principalmente nos princípios constitucionais, merece ser aqui reproduzida em grande parte, pois pode servir com ponto de partida para firmar entendimento jurisprudencial a respeito da necessidade ou não da apresentação obrigatória de certidões negativas de débitos tributários, para se obter o deferimento de pedido judicial de recuperação judicial, nos termos da Lei 11.101/2005.

Assim se pronunciou o magistrado:

?…Enfim, aprovado o plano de recuperação, pelos credores, resta verificar se a Autora merece ver deferido seu pedido, uma vez que ela não cumpriu com a exigência ditada pelo artigo 57 da Lei que rege a matéria…?

?Trata-se de norma cogente: aprovado o plano, de forma tácita ou em assembléia, cabe ao devedor, para ver deferido o pedido de recuperação, apresentar prova de estar quite com o fisco. E, como a autora não satisfaz essa exigência, a conseqüência lógica seria o indeferimento de seu pleito, com a conseqüente extinção do processo.

A solução, contudo, não pode ser tão simplista.

Como é sabido, o instituto da recuperação judicial foi inspirado no princípio constitucional da função social da empresa, que por sua vez, se coliga com o princípio da dignidade da pessoa humana.

A empresa, na ordem constitucional vigente, tem ou deve ter – uma função social, não podendo se prestar apenas à satisfação dos interesses do empresário. Acima destes, estão os postulados básicos da sociedade pretendida pelo constituinte, onde a empresa se encaixa como veículo para a livre iniciativa e livre concorrência, para a produção de riquezas compartilháveis (mercê da tributação dos sresultados positivos obtidos), e para, sobretudo, a dignificação do ser humano, através da geração de empregos que permitam às pessoas valorizar-se pelo trabalho e pela renda por meio dele obtida…?

?Nessa ordem de idéias, o instituto da recuperação judicial se apresenta como um mecanismo voltado à preservação de uma empresa que atende a uma função social e que, por circunstâncias acidentais, entra em crise econômico-financeira, mas que, apesar disso, se mostra viável dependendo apenas de ajustes em sua rotina administrativa e de algumas concessões por parte dos credores para se reerguer e voltar a operar de forma saudável para o mercado.

A avaliação da viabilidade da recuperação da empresa, outrossim, não cabe ao Estado (ao Poder Judiciário), senão excepcionalmente (Lei 11.101/2005, art. 58, § 1.º). De ordinário, incumbe aos credores avaliar e aprovar, ou rejeitar, o conjunto de medidas propostas pela devedora para a superação da situação deficitária em que se encontra…?

?E, se os credores aprovam o plano de recuperação, vale dizer, se eles dão à devedora o voto de confiança que Ihes foi pedido aceitam sacrificar-se em prol da preservação da empresa, soa desarrazoado, uma vez atingido o consenso, impedir que o objetivo mirado pelas partes seja alcançado, por conta da existência de pendências junto ao fisco e à previdência…?

?Com efeito, é intuitivo que uma empresa que chegue ao ponto de requerer recuperação judicial tenha acumulado, junto aos débitos particulares, elevado passivo tributário e previdenciário…?

?Na realidade, a subordinação do deferimento da recuperação judicial à apresentação de certidões negativas de débitos tributários colide com os princípios constitucionais antes mencionados na medida em que inviabiliza a salvação da empresa, entendimento do qual não discrepa a doutrina…?

?Enfim, a exigência de apresentação de certidões negativas – que, na prática, equivale a impor ao empresário estar em dia com as obrigações fiscais e previdenciárias – inviabiliza a recuperação judicial. Fazendo-o, conflita com o princípio constitucional da função social da empresa e com os outros que a ele se ligam, entre os quais o da dignidade da pessoa humana.

E, na colisão de princípio e norma, prevalece aquele, devendo ser dispensada a Autora, destarte, da apresentação das certidões…?

?Se não há empecilho ao ajuizamento de execuções fiscais, ou ao prosseguimento de execuções já instauradas, é desarrazoado exigir do devedor a regularização de sua situação perante o fisco para ver deferido o pedido de recuperação judicial, considerando que esta, concedida, nenhuma limitação acarretará ao direito das Fazendas Públicas.

Embora não esteja escrito na Constituição, o princípio da razoabilidade está implícito nela, e, quando ferido injustificadamente, autoriza relevar exigências desmedidas, que não tenham outra finalidade senão a de impedir a realização de direitos.

Finalmente, um último argumento milita em favor da inexigibilidade de apresentação de certidões negativas de débitos fiscais para o deferimento de pedido de recuperação judicial.

A justificativa implícita para a formulação dessa imposição ao devedor é clara: obrigá-lo a, sem maiores questionamentos, compor-se com o fisco, renunciando ao direito de discutir judicialmente a existência da composição e valor de seus débitos.

Ocorre que a jurisprudência tem rechaçado sistematicamente o uso de tal expediente por parte dos Governos, por nele um mecanismo de negação ao contribuinte das garantias ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa…?

?Sintetizando, a exigência de apresentação de certidões comprobatórias de inexistência de débitos junto ao fisco e à previdência, feita pelo artigo 57 da Lei 11.101/2005, ofende o princípio constitucional da função social da empresa, malfere o princípio da razoabilidade e agride garantias constitucionais ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa dadas ao contribuinte.

Por tal razão, deve a Autora ser dispensada do cumprimento dessa mesma exigência, e, porque preenchidos os demais requisitos legais, ao que se soma a aprovação unânime dos credores que compareceram à assembléia-geral ao plano de recuperação, deve ser deferido o pedido inicial?.

A acertada postura do magistrado, decidindo com base em princípios, demonstra evolução e preocupação dos magistrados em fazer Justiça.

Este também é o ensinamento de José Joaquim Gomes Canotilho (A ?principialização? da jurisprudência através da Constituição, RePro 98/83) ao afirmar que os juízes de um Estado de Direito Democrático devem estar preparados para decidir com fundamento nos princípios, mediante manifestação onde afirma que a ?subordinação à lei e ao direito por parte dos juízes reclama, de forma incontornável, a principialização da jurisprudência, ou seja, a mediação judicativo-decisória dos princípios jurídicos relevantes para a solução materialmente justa dos feitos submetidos à decisão jurisdicional?.

Em razão disso, é importante o aprimoramento dos membros do Poder Judiciário no manejo dos princípios, pois a crescente massificação das relações jurídicas fez aumentar a busca da tutela jurisdicional junto ao Estado-juiz, enquanto o legislador não tem conseguido acompanhar a evolução das instituições jurídicas, como impõe a sociedade moderna, razão pela qual o legislador tem passado a elaborar normas mais genéricas, de forma a permitir que o órgão jurisdicional aplique a norma ao caso concreto.

José Eli Salamacha é mestre em Direito Econômico e Social pela PUCPR e advogado no Paraná.

Email: jes@wsw.com.br