A recente incriminação da clonagem humana reprodutiva

Com o advento da recente Lei 11.105/2005, que revogou expressamente a Lei 8.974/1995, a matéria obteve um tratamento jurídico nitidamente superior mais amplo e completo ao da legislação antecedente, com várias inovações importantes.

Assim, a nova lei brasileira de biossegurança estabeleceu normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de organismos geneticamente modificados OGM e seus derivados, tendo como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área da biossegrança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente (art. 1.º, Lei 11.105/2005).

Dotado de uma série de dispositivos conceituais de grande relevância para a compreensão da matéria e de técnica legislativa mais acurada, o novo texto legal inova, por exemplo, ao consagrar e regulamentar a utilização das células-tronco embrionárias para fins terapêuticos e de pesquisa (art. 5.º), e ao proibir expressamente a clonagem (art. 26).

Feitas essas considerações, cumpre tecer alguns comentários iniciais sobre o artigo 26 da Lei 11.105/2005 (realizar clonagem humana).

O bem jurídico protegido, in casu, vem a ser a identidade e a irrepetibilidade do ser humano, de cada indivíduo. Indiretamente, tutela-se também a inalterabilidade do patrimônio genético da humanidade. Como objeto material, têm-se os gametas e embriões. Quanto ao sujeito ativo desse delito pode ser qualquer pessoa (crime comum), já os sujeitos passivos são o indivíduo nascido por meio de clonagem o clone e, de modo indireto, a coletividade (a espécie humana).

A conduta incriminada consiste em realizar (praticar, efetuar, levar a cabo) clonagem humana.

Clonagem elemento normativo jurídico do tipo de injusto é um processo de reprodução assexuada, produzida artificialmente, baseada em um único patrimônio genético, com ou sem utilização de técnicas de engenharia genética (art. 3.º, VIII, Lei 11.105/2005). Clonar, enquanto mecanismo de reprodução assexual (v.g., técnica de transferência nuclear celular), significa criar um ser humano com o mesmo código genético de outro já existente, vivo ou morto. Trata-se, portanto, de duplicar o material genético de uma célula ou organismo, sem alterá-lo.

A lei estabelece duas hipóteses de clonagem humana, levando em consideração as finalidades a que se destinam, quais sejam, uma para fins reprodutivos clonagem com a finalidade e obtenção de um indivíduo (art. 3.º, IX) e outra com escopo terapêutico clonagem com a finalidade de produção de células-tronco embrionárias para utilização terapêutica (art. 3.º, X, Lei 11.105/2005).

A clonagem não constitui uma manipulação genética propriamente dita ainda que seja também uma técnica de engenharia genética , visto que não há manipulação do ADN dos genes. Nela, diferentemente da fecundação sexuada, em que se somam os 23 cromossomos do pai aos 23 da mãe, forma-se um ?único?, inédito e irrepetível ser e há desde o início e há desde o início 46 cromossomos já combinados.

Alguns dos riscos decorrentes da clonagem humana têm sido destacados com veemência pela doutrina e pelo Conselho da Europa: risco da destruição do direito à identidade genética; risco da clonagem do homem ótimo, do super-homem (programação ou reprodução totalitária de seres humanos em série); risco de implicações imprevisíveis em sua totalidade, visto que a diversidade genética é basilar para a sobrevivência de qualquer espécie; risco do predomínio de uma determinada geração, entre outros.

O problemático da clonagem afirma-se ?não é a coincidência do genoma de um ser com outro, mas sim o fato de que um ser humano tenha sido produzido como meio para outro fim que não o mesmo e que para isso se lhe tenha sido imposta uma identidade genética com outro ser humano […]. A manipulação de um ser humano em sua identidade genética com o objetivo de subordiná-lo aos fins de um terceiro produz, sem dúvida, uma instrumentalização que afeta a essência da pessoa, transgredindo assim o predicado da finalidade em si mesmo, que corresponde ao ser humano como pessoa?(1).

Em resumo, três são os argumentos principais contra a clonagem reprodutiva humana: identidade absoluta negadora da alteridade do clone; instrumentalização negativa da pessoa do clone e determinismo negativo da autonomia do clone.

Posto isso, conclui-se que a clonagem humana reprodutiva deve ser vedada penalmente sem paliativos e de modo severo: ?em primeiro lugar porque atenta contra o direito a ser filho de pais biológicos, e o direito de ter uma dotação genética única; e, também, porque traz consigo graves riscos aos direitos fundamentais e ao futuro da espécie humana?.(2)

Demais disso, deveria, em realidade, ser considerada não apenas criminalizada, mas erigida à categoria de delito contra a humanidade, tal como o eugenismo ou a escravidão, dada sua extrema gravidade e amplitude, visto que constitui verdadeiro atentado contra a humanidade pluralidade de seres únicos, a espécie humana como um todo, podendo significar a ?destruição da ordem humana, a negação do esforço pelo qual existe a humanidade do homem?.(3) Com efeito, o ser humano encerra alteridade, individualidade, identidade, não podendo ser enclausurado, acorrentado, desde sua origem, sem perder seu estatuto no contexto da humanidade.(4)

O tipo subjetivo do delito em apreço é composto pelo dolo (direto ou eventual). Sua consumação se opera com a realização da clonagem humana. É delito de resultado, sendo que a tentativa é, em princípio, admissível.

A pena cominada é reclusão, dois a cinco anos e multa. Cabe salientar que esse quantum lamentavelmente dista muito da necessária proporcionalidade entre a gravidade da infração penal (magnitude do injusto) e a resposta penal imposta pelo ordenamento jurídico.

O processo e o julgamento desse delito são de competência da Justiça Estadual. A ação penal é pública incondicionada.

Notas:

(1) ESER, A. et alii. La clonación humana. Fundamentos biológicos e valoração ético jurídica. RDGH, 9, 1998, p.100.

(2) BELLVER CAPELLA, V. Consideraciones filosófico jurídicas en torno a la clonación para la reprodución humana. RDGH, 10, 1999, p. 62.

(3) Cf. DELMAS-MARTY, M. Le clonage reproductif humain. In: DELMAS-MARTY, M.; ZHANG, N. (Dir.). Clonage humain. Droits Sociétés Étude Franco-Chinoise, p. 86-87.

(4) Ibidem, p. 85.

Luiz Regis Prado é professor titular de Direito Penal e coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Estadual de Maringá.

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