A questão das ocupações coletivas urbanas

A expressão direitos humanos foi se consagrando ao longo da história, na medida em que representava originariamente, um conjunto de garantias de resistência contra os poderes do Estado. Mais recentemente, contudo, a concepção de um conjunto de direitos fundamentais da pessoa humana, deixou de cingir-se a aqueles que funcionam como direito de defesa diante do poder e expandiu-se como direito a um leque de prestações que devem ser concretizadas pelo Estado. O extravasamento daí resultante, tem gerado em Doutrina, dois modos de enxergar tal fenômeno: a concepção de direitos humanos de primeira, segunda, terceira e quarta gerações e a idéia de um só conjunto horizontal, denominado de direitos humanos, econômicos, sociais e culturais.

Esta evolução produz uma Ordem Jurídica na qual se garante aos cidadãos uma série de prestações que devem ser fornecidas através de políticas públicas de diversos feitios. Como exemplo, vejamos o disposto no ?caput? do artigo 227 da CF: ?É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão?.

A hipótese é emblemática porque, na prática, a criança e o adolescente oriundos situados na faixa da exclusão para além das fronteiras da má distribuição de renda, estão completamente abandonados. Florescem num pântano de miséria em que o acolhimento pela família vem com a marca da pobreza e o acolhimento pela sociedade desemboca no desemprego, na falta de oportunidade. Como se vê, existem direitos fundamentais como este, que, no papel, a carta política reveste de ?absoluta prioridade? mas que, no mundo do real não tem qualquer efetividade. Vale dizer que a inoperância do Estado em concretizar estes direitos, secciona o país delimitando uma zona de exclusão onde vigora a Não-Constituição. Na feliz expressão lavrada no Supremo Tribunal Federal, a não concretização dos direitos constitui uma indireta revogação da norma que os constituiu: ?a inércia do Estado qualifica-se, perigosamente, como um dos processos informais de mudança da Constituição?. Vale dizer que ?se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional?.

Vislumbra-se por aí um efetivo poder normativo negativo do Estado para produzir essa ?informal mudança da Constituição?. As necessidades das classes dominantes é que estão na base deste poder, com o fundamento (teórico) que o Estado opera com um uma limitação real de recursos e não há como exigir que ele execute algo para o qual não dispõe dos meios suficientes.

O Estado revoga a norma, quando esta esbarra nos limites daquilo que se pode proporcionar aos dominados num certo momento histórico de desenvolvimento das forças produtivas. Esta força normativa da necessidade das classes dominantes fica bem clara num outro exemplo, contido no artigo 7.º, IV, da CF, onde se estabelece que é direito do trabalhador receber, como empregado, pelo menos, o ?salário mínimo… capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo?. Para o DIEESE (1), este valor corresponde a R$ 1366,76 em setembro de 2003, muito embora, o valor legal esteja em R$ 240,00.

Ao estabelecer este importe que corresponde a menos de 1/5 do que seria o valor constitucionalmente devido, o Estado anuncia (2) que o mesmo ?representa um considerável esforço, especialmente se considerarmos as restrições orçamentárias constantes do presente orçamento?. A carta política é violada com o singelo argumento de que a União não pode respeitá-la sem que comprometa seu equilíbrio orçamentário.

O salário mínimo deixa de ser o menor patamar de ganho necessário para garantir a vida e passa a ser indexado em razão do máximo que as classes dominantes podem se permitir outorgar. A reserva do possível, exibe aí, com toda a crueza, a força normativa da necessidade, nas palavras amargas do Presidente da República(3): ?240 reais, neste momento, creio, é o máximo que a prudência e a cautela me recomendavam?.. A prioridade é atender às necessidades do Estado e das classes dominantes.

Na outra ponta da linha, todavia, vemos uma questão bem alvitrada por Jacques Távora Alfonsin(4) ao chamar a atenção para a importância do reconhecimento ?da força normativa das necessidades vitais, ao ponto de garantir sua satisfação, como efeito mínimo do conteúdo dos direitos fundamentais ao alimento e à moradia?. Vimos que as necessidades do andar de cima fazem com que seja mudada informalmente a carta política. No entanto, a garantia de um mínimo existencial para cada indivíduo lá no andar de baixo, é necessidade que deve ser tida como correspondente poder normativo.

A questão da moradia é aspecto emblemático deste tipo de dilema e vale aqui lembrar o caso mais rumoroso recentemente nesta seara. No dia 7 de agosto de 2003, a Administração Pública do Estado de São Paulo mobilizou (5) ?800 policiais, mais 70 homens da cavalaria, 30 cães, dois helicópteros, 140 veículos? para retirar algumas milhares de pessoas que ocupavam terreno de propriedade de uma indústria automobilística. Tal expulsão deu-se sob o rufar dos sinistros tambores retóricos do Governador do Estado de São Paulo que vinha invocando ?a lei? de modo escandalizado, com brados tais como, ?a democracia é o império da lei(6)? e ?invadiu, vai desinvadir (7)?.

Este discurso inflamado escamoteava o quando é equivocado tratar os ocupantes como se fossem criminosos. Para as entidades européias que se dedicam ao assunto(8), nunca é demais lembrar que(9) ?tratar os sem-teto ocupantes como criminosos é estar cego para as circunstâncias econômicas e sociais que tornam necessárias as ocupações… As ocupações são a expressão do desespero mas, também, da esperança. Se tivessem os meios, a maioria do sem-teto iriam optar por viver em casas adequadas, como todo mundo?.

O que há de educativo no episódio é que o debate não veio a incluir a questão de que há uma obrigação estatal de garantir o mínimo existencial para cada indivíduo. Num país capitalista em que só se obtem moradia mediante dinheiro, como ficamos neste cenário em que o Estado e o Mercado não são capazes de produzir postos de trabalho para todos os cidadãos? É preciso convir que a força da necessidade das classes dominadas produz um direito público subjetivo contra o Estado no sentido de que lhes seja assegurado um padrão mínimo existencial. O direito a este mínimo está contido no princípio constitucional da dignidade humana.

Para abrir o debate sobre a questão, vale recorrer a um sensível texto de Ingo Sarlet(10): ?em todas as situações em que o argumento da reserva de competência do legislador (assim como a separação de poderes e as demais objeções habituais aos direitos sociais a prestações como direitos subjetivos) implicar grave agressão (ou mesmo o sacrifício) do valor maior da vida e da dignidade da pessoa humana, ou nas hipóteses em que, da análise dos bens constitucionais colidentes, resultar a prevalência do direito social prestacional, poder-se-á sustentar, na esteira de Alexy e de Gomes Canotilho, que, na esfera de um padrão mínimo existencial, haverá como reconhecer um direito subjetivo definitivo a prestações?.

As necessidades das classes dominantes entrincheiradas no conceito da reserva do possível, tem sido argüidas para promover a mudança informal da Constituição sonegando os direitos de prestação para atender às suas conveniências. Por outro lado, as necessidades vitais para a sobrevivência das classes dominadas, tal como, a moradia, não vem sendo consideradas como configuradoras de um direito subjetivo contra o Estado. Ao contrário, a resistência a tal raciocínio compreende um amplo arco que se alonga desde a concepção de normas constitucionais de caráter meramente programático até a idéia do limite fático do possível, que é bem compreendida no seguinte texto(11):?O juiz não pode desenvolver ou efetivar direitos sem que existam meios materiais disponíveis para tanto. Doutro lado, o atendimento de determinada pretensão a prestações materiais pode esvaziar outras?.

Na medida em que se pense o padrão mínimo existencial como um direito público subjetivo contra o Estado, estaremos para desembocar na idéia de que o Estado-Juiz não pode promover a remoção de alguém que ocupa indevidamente um imóvel porque sua miséria não lhe dá outra alternativa de moradia, sem providenciar para que aquele a ser removido seja remetido para debaixo de um teto. A idéia é singela e constitui até a banderia de resistência (?pas du expulsion sans relogement?) dos ?sans logis?, na França, fazendo vicejar por ali esta grande questão: há um direito à moradia ? Alguns autores vislumbram avanço neste sentido(12) na decisão 94-359 DC du 19 janvier 1995 do Conseil Constitucionnel(13) que vem gerando intensa controvérsia.

A visão deste problema, inclusive na Doutrina mais progressista em nossas plagas tem sido resistente a tal entendimento(14):?o direito à moradia tem eficácia plena e tem aplicação imediata gerando a obrigação para o Estado brasileiro de tornar sua efetivação plena de forma progressiva, o que implica na adoção imediata de uma política habitacional que priorize suas ações para atender as pessoas pobres e miseráveis?. Para estes autores, tal pressuposto implica no direito a uma política habitacional e não, à habitação propriamente dita(15): ?cabe esclarecer que essa obrigação não significa que o Estado brasileiro deve prover uma moradia (uma casa) para cada cidadão?.

Podemos concordar em que essa obrigação não significa em que o Estado deve prover à propriedade de uma moradia para cada cidadão mas, entendemos que existe a obrigação do Estado de prover a que cada cidadão possa dispor de um teto sob o qual possa abrigar-se, ainda que não seja sua propriedade.

A grandiosidade do problema assume traços catastróficos num país onde imensa massa de excluídos não pode pagar por um teto sobre sua cabeça, deficiência que origina enorme massa de conflito nas grandes cidades. Na última década, a cidade de São Paulo, por exemplo, cresceu em 8% e a população favelada elevou-se em 30%.

Hoje, estes cidadãos ocupam 30,62% do solo paulistano, com 2018 favelas e 1,16 milhão de pessoas(16). A inexistência do acesso ao direito à moradia, faz surgir uma favela a cada oito dias porque a desigualdade se perpetua a cidade legal coexiste com enorme não-cidade em que as pessoas ocupam o solo mediante a transgressão da legislação infraconstitucional.

Neste ponto é que chegamos ao final de nosso estudo, retornando ao ponto de partida: numa sociedade onde é preciso pagar para desfrutar dos bens da vida e, na qual somente se obtem os meios de pagamento através do labor, como fica a situação daqueles que não conseguem acesso a postos de trabalho? Este é o problema fundamental que tem ficado submerso em todo este ciclo de agravamento do desemprego estrutural. Afinal, se o mercado não dispõe de ocupação para todos, aqueles que não tem renda, numa cega visão positivista, não tem direito a comer e nem a morar, já que não dispondo de trabalho, não dispõem de dinheiro para pagar por estes bens. Nesta ótica perversa, a única solução legal para este contingente de algumas dezenas de milhões de cidadãos, seria aceitarem pacificamente que tem de morrer, já que não tendo o direito de comer ou morar sem pagamento, não lhes restaria outra alternativa a não ser o estóico e legalista falecimento.

Da mesma forma que é lógico dizer que o Estado não pode ser compelido a fazer o que não é possível, é mais lógico, ainda, dizer que o Estado tem a obrigação de garantir o padrão existencial mínimo para seus cidadãos. A interpretação positivista cega que nega a existência deste direito público subjetivo contra o Estado, resulta em admitir que a única solução jurídica para o esfomeado é morrer de fome. No limite, a conseqüência de tal raciocínio em relação à questão dos chamados sem-teto, está em que há uma obrigação estatal de prover a que o cidadão não fique ao desalento. A conseqüência necessária deste pressuposto, caminha para imputar ao Estado-Juiz, diante destas ocupações coletivas que ocorrem em nossas cidades, o dever de somente promover a retirada dos ocupantes mediante a prévia garantia de que vão ser alojados sob algum teto fornecido pelo Estado ou alguém por este.

A grande questão enfrentada hoje em dia pelo Judiciário reside nesta colisão entre reserva fática do possível e garantia de padrão mínimo existencial. Na prática, contudo, somente o que se tem visto é o raciocínio simplista de que é preciso garantir o direito de propriedade. Na colisão de direitos, será preciso sempre aplicar o princípio interpretativo da proporcionalidade e render homenagem à dignidade humana que, com certeza, é direito tão precioso como o direito de propriedade.

Notas:

(1) http://www.dieese.org.br/rel/rac/salminout03.html

(2) exposição de motivos da M.P. 116/2003, in https://www.planalto.gov.br

(3)http://www.radiobras.gov.br/integras/03/integra?070403?2.htm

(4)ALFONSIN, Jacques Távora ?O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação e à moradia?, Sérgio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre 2003, pág. 63

(5)http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0808200311.htm

(6)Diário de São Paulo 24/07/2003

(7)Diário de São Paulo 03/08/2003

(8)Centre of Housing Rights and Evictions, http://www.cohre.org/hrframe.htm

(9)(tradução do autor): Treating squatters as criminals turns a blind eye to the economic and social circumstances that make squatting necessary… Squatting is an expression of desperation, but also of hope. If they had the means, most squatters would choose to live in adequate housing with secure tenure -just like everyone else. Não vemos uma palavra em português equivalente a ?squatters?, já que o ?squat? é a prática de ocupar imóveis abandonados, hipótese, na Inglaterra, é agasalhada pela lei.

(10) SARLET, Ingo Wolfgang ?Os direitos fundamentais sociais na constituição de 1988?, in Direito Público, Revista Diálogo Jurídico, http://www.direitopublico.com.br/pdf/REVISTA-DIALOGO-JURIDICO-01-2001-INGO-SARLET.pdf

(11) MORO, Sergio Fernando. Por uma revisão da teoria da aplicabilidade das normas constitucionais . Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 42, jun. 2000. Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=98. Acesso em: 24 dez. 2003.

(12) SARLET, Ingo Wolfgang ?Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais?, Livraria do Advogado, segunda edição, Porto Alegre, 2002, pág. 116. O autor faz este registro mas salienta que o debate sobre a interpretação do acórdão respectivo continua em aberto.

(13) http://www.conseil-constitutionnel.fr/wcconsti/WCC?debut.ow : ?Considérant qu?il ressort également du Préambule de la Constitution de 1946 que la sauvegarde de la dignité de la personne humaine contre toute forme de dégradation est un principe à valeur constitutionnelle; Considérant qu?il résulte de ces principes que la possibilité pour toute personne de disposer d?un logement décent est un objectif de valeur constitutionnelle?.

(14) SAULE JÚNIOR, Nelson ?O Direito à Moradia como responsabilidade do Estado brasileiro?, in ?Direito à Cidade – Trilhas legias para o direito às cidades sustentáveis?, Editora Max Limonad 1999, pág. 96

(15) SAULE JÚNIOR, Nelson, idem, pág. 78

(16)Folha de São Paulo, 12/02/2003

João José Sady é advogado é mestre e doutor em Direito das Relações Sociais pela PUCSP, professor no curso de Direito da Universidade de São Francisco – São Paulo.

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