A Lei n.º 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei dos Crimes Ambientais), que ?dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente e dá outras providências?(1), visando tutelar o meio ambiente, prevê, no caput do seu artigo 3.º, a responsabilidade penal da pessoa jurídica (além da civil e da administrativa), quando a infração ambiental for ?cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou no benefício da sua entidade?.
Desde o advento da Lei n.º 9.605/98 houve muita discussão sobre a possibilidade de imputar-se criminalmente a pessoa jurídica nos moldes em que se encontram as legislações penal e processual penal brasileiras. Deixando-se de lado esta polêmica e, partindo-se do fato que a lei está em vigor, levanta-se, agora, outra questão: seria possível a condenação de uma pessoa jurídica de direito público interno por crime cometido contra o meio ambiente?
Antes mesmo da análise desta ?dúvida?, esclarece-se: pessoas jurídicas de direito público interno são a União, os Estados membros, os Municípios, o Distrito Federal, as autarquias e as demais entidades de caráter público criadas por lei, conforme o artigo 41 do Código Civil.
Apenas para situar o leitor, ressalta-se que as autarquias são pessoas jurídicas de direito público interno, criadas por lei específica, dotadas de capacidade administrativa e patrimônio próprio, às quais é atribuído o desempenho de atividade de interesse público.
E, ainda, por ?demais entidades de caráter público criadas por lei? a que se refere o Código Civil, pode-se entender que são as fundações públicas e, possivelmente, as sociedades de economia mista. As primeiras caracterizam-se por serem uma universalidade de bens, total ou parcialmente, do Estado, criadas com autorização legal, e destinadas à persecução de interesses públicos especialmente no âmbito social , ao passo que as segundas, são criadas por força de lei, na forma de sociedade anônima, cujo capital parte público, parte privado é distribuído entre a administração pública e a particular, dando-lhe um regime jurídico híbrido.
Segundo CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, as pessoas jurídicas de direito público interno são ?entidades que exercem finalidades de interesse imediato da coletividade, e, incorporadas ao organismo estatal, regem-se por princípios de direito público?(2).
Assim sendo, estão sempre submetidas aos princípios da Administração Pública, possuindo prerrogativas que ?colocam a Administração em posição de supremacia perante o particular, sempre com o objetivo de atingir o benefício da coletividade? e, em contrapartida, restrições, que ?limitam a sua atividade [da Administração] a determinados fins e princípios que, se não observados, implicam desvio de poder e conseqüente nulidade dos atos da Administração?(3).
Entre tais princípios, está o da legalidade, previsto no caput do art. 37 da Constituição Federal, de acordo com o qual o administrador público (ente de uma pessoa jurídica de direito público) deve agir sempre dentro dos limites da lei, que muitas vezes restringe sua atuação visando os interesses da coletividade(4).
Veja-se que a responsabilização civil da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal e seus Territórios tem efeitos diversos da condenação criminal, que gera conseqüências bem mais gravosas ao apenado. E é por isso que, rotineiramente, vê-se nos Tribunais a condenação das pessoas de direito público acima indicadas ao pagamento de indenizações em decorrência de lesões civis causadas ao meio ambiente ou mesmo aos cidadãos.
Nos artigos 21 e 22, a Lei n.º 9.605/98 prevê as penas aplicáveis especificamente às pessoas jurídicas.
Dispõe o artigo 21 que ?as penas aplicáveis isolada, cumulativa ou alternativamente às pessoas jurídicas, de acordo com o disposto no art. 3.º são: I multa; II restritivas de direitos; III prestação de serviços à comunidade.?
Em seguida, o artigo 22 define quais são as penas restritivas de direito das pessoas jurídicas: ?I suspensão parcial ou total de atividades; II interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade; III proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações?.
Por sua vez, o artigo 23 traz quatro modalidades de serviços a serem prestados à comunidade pelas empresas: custeio de programas e de projetos ambientais, execução de obras de recuperação das áreas degradadas, manutenção de espaços públicos e contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas.
A aplicação de pena de multa ao Estado, sem dúvida, seria algo inconcebível, vez que a pena pecuniária reverteria em favor dele próprio.
Também as penas restritivas de direitos elencadas na Lei dos Crimes Ambientais são inadequadas ao Estado, pois se houvesse a suspensão, ao menos parcial das suas atividades, a coletividade sofreria as conseqüências, ocorrendo a perda da função estatal. Isso ocorreria devido ao princípio da continuidade dos serviços públicos, segundo o qual a atividade do Estado não pode parar sob pena de serem interrompidos serviços essenciais à coletividade. E, pelos mesmos motivos, também não há que se falar em interdição temporária do estabelecimento, obra ou atividade.
Além destes fatores, uma das penas restritivas de direitos previstas pela Lei n.º 9.605/98 é a proibição de contratar com o Poder Público, deixando claro que o legislador não pretendeu enquadrar nos ditames da lei a pessoa jurídica de direito público, devido à impossibilidade de uma esfera do Poder Público contratar com ela mesma. O mesmo não se pode afirmar quanto à celebração de contratos entre esferas distintas do Poder Público, como, por exemplo, entre a União e um Município, pois tal proibição ?afrontaria o princípio federativo e o interesse geral da população?(5). Mas, ainda assim, a pena seria inaplicável porque tal proibição também feriria os interesses da coletividade.
Neste sentido, GUILHERME JOSÉ PURVIN FIGUEIREDO e SOLANGE TELES DA SILVA consideram que a única sanção condizente com as pessoas jurídicas de direito público seria a prestação de serviços à comunidade, tais como ?o custeio de programas e projetos ambientais, a execução de obras de recuperação de áreas degradadas, a manutenção de espaços públicos e a realização de contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas?(6) (previstas no artigo 23, as quais poderiam ser aplicadas administrativamente, sem necessidade de recorrer-se ao Direito Penal).
Sob o mesmo ponto de vista, LUIZ REGIS PRADO entende que o Estado fica excluído das sanções penais previstas na Lei(7).
Desta forma, conclui-se que nenhuma das sanções previstas na lei em questão pode ser aplicada às pessoas jurídicas de direito público, sendo necessário, portanto, a previsão de penas compatíveis com a natureza jurídica das referidas pessoas, que tornassem viável a sua imputação penal.
Notas
(1) BRASIL. Lei n.o 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Coletânea de Legislação Administrativa. 3.º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 683.
(2) PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 20.º ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v.1: Introdução ao direito civil; teoria geral do direito civil. p. 317.
(3) DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 66.
(4) Id., p. 67.
(5) FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de; SILVA, Solange Teles da. Responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público na lei 9.605/98. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, ano 03, n. 10, p. 42-59, abr.-jun. 1998. p. 51.
(6) Id., p. 52.
(7) PRADO, Luiz Regis. Crimes contra o ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 22.
Patrícia de André Cardoso é bacharel em Direito
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