De acordo com o disposto no Decreto 6.107 de 4 de maio de 2007, o Brasil decretou o licenciamento compulsório de duas patentes do medicamento Efavirenz, de titularidade do laboratório estadunidense Merck, Sharp & Dohme. A medida foi tomada após terem resultado infrutíferas as negociações para o estabelecimento de um preço aceitável para o governo brasileiro, que distribui o remédio gratuitamente para pacientes contaminados pelo vírus da AIDS.

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Um impasse como esse era, desde há muito, previsível pela absoluta inadequação do acordo multilateral de regência da propriedade intelectual, o Acordo sobre Aspectos Ligados ao Comércio da Propriedade Intelectual, mais conhecido como Trips, acrônimo derivado da respectiva denominação em língua inglesa.

De fato, o Trips, como lembro em meu livro ?A OMC e os tratados da rodada Uruguai?, trata de matéria já coberta há mais de 100 anos por outros tratados internacionais e foi celebrado à margem de outro organismo multilateral, a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI).

Ocorre, todavia, que os países desenvolvidos andavam descontentes com a OMPI, durante a Rodada Uruguai do GATT, que foi de 1986 até 1994, porque aquele organismo agia com independência e equilíbrio entre o monopólio das patentes e o impacto social do seu uso.

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A referida postura descontentava em muito os países desenvolvidos, que buscavam a afirmação absoluta do monopólio, bem como a exeqüibilidade internacional dos direitos dele decorrentes, em intransigente defesa de interesses de fortes setores dos grandes negócios de suas economias.

Dessa maneira, os países desenvolvidos conseguiram moldar no Trips um sistema que atendia perfeitamente os seus interesses, deixando de lado diversas questões fundamentais de interesse dos direitos humanos em geral e dos países em desenvolvimento, em particular. Dentre essas, coloca-se a importante matéria da implementação de políticas de saúde pública, uma omissão imperdoável que afeta os direitos humanos de bilhões de pessoas.

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Essa matéria já havia sido objeto de consultas, no âmbito do sistema de resolução de disputas da OMC, entre o Brasil e os Estados Unidos da América, ante a possibilidade do primeiro decretar o licenciamento compulsório de medicamentos, não materializada em função de acordo na ocasião. Porém, o potencial de conflito esteve sempre presente.

O tratamento jurídico do Trips tornou-se tão inadequado que a própria UNCTAD reconheceu a necessidade de se encontrar, no âmbito da Rodada Doha da OMC, presentemente em andamento, uma forma tanto eficaz quanto permanente para lidar com a questão da saúde pública, de modo a facilitar o acesso à medicação essencial. Outros organismos internacionais, como a OMS, manifestaram-se no mesmo sentido.

No âmbito da Rodada, no entanto, permanecem intransigíveis os países desenvolvidos. Enquanto isso, o Brasil agiu, na conformidade do autorizado pelos artigos 30 e 31 do Trips, decretando o licenciamento compulsório das patentes da Merck, nos termos e nas condições elencadas no texto do referido tratado, inclusive a de remuneração.

Ao fazê-lo, o Brasil pode ter deflagrado um grande processo contencioso internacional, que tenderá a se desdobrar em diversas frentes. Em primeiro lugar, para além das reações do cartel do setor, o País deverá lidar com as ações unilaterais norte-americanas, represálias arbitrárias que caracterizam a ação do governo dos EUA. Acresce que o Brasil poderá ser questionado perante o sistema de resolução de disputas da OMC.

Terá valido a pena? Impõe-se a resposta afirmativa. A luta pela decência nas relações comerciais internacionais, pelo equilíbrio dos interesses entre Estados e pela afirmação dos direitos humanos nos foros globais compensa e deve ser sempre uma missão dos governos brasileiros.

Durval de Noronha Goyos é advogado.