A atividade judicial durante o século XIX e início do XX foi concebida como mera administração da lei pelo Judiciário, instituição tida como neutra, imparcial e objetiva, ficando o intérprete, aplicador do Direito, convertido a um simples burocrata do Direito Positivo. Como o que importa não é a explicação, a compreensão ou a orientação dos comportamentos jurídicos, e sim a tipificação e sistematização de situações normativas hipotéticas, ao agir de modo “técnico”, isto é, sem preferências valorativas e imune a questões político-sociais, o jurista atua limitado pelas garantias formais, da certeza jurídica e do império da lei, postulados fundamentais do modelo paradigmático liberal-burguês do Estado de Direito Positivo.
Todos os ramos do direito são baseados em tal concepção liberal, individual e positivista. No âmbito do direito processual não é diferente.
O processual civil servia como instrumento de exercício da função jurisdicional, voltada à tutela dos direitos subjetivos privados que fossem transgredidos. Os procedimentos, os incidentes processuais e as regras de distribuição do ônus da prova pautavam-se nessa concepção individualista do prestação jurisdicional. Ao autor competia a prova dos fatos constitutivos de seu direito e ao réu os extintivos, impeditivos e modificativos, concepção clássica atinente à teoria da prova e que perdurou por décadas.
Ocorre, no entanto, que o próprio século XIX foi palco de inúmeras formações sociais que atingiam sua maturidade, tais como o sindicalismo (incrementado pela Revolução Industrial), a estruturação e fortalecimento dos partidos políticos, dentre outros agrupamentos que reivindicavam espaços e direitos específicos.
E, assim, a mudança das relações jurídicas na sociedade moderna, afastando-se do individualismo clássico cria a necessidade de novas formas de tutela jurisdicional dos novos direitos(1) que, antes, quando muito, eram de preocupação precípua da função administrativa.
Essa modificação de paradigma, marcada também por um aumento dos conflitos sociais, exige uma revisão dos institutos processuais e uma adequação de seus conceitos à realidade atual, dando instrumentos ao magistrado para a concretização dos princípios e dos direitos previstos na Constituição. Essa perspectiva, trazida à realidade brasileira, ganha maiores proporções quando se percebe a ineficácia e inoperância das políticas governamentais, deixando o Poder Judiciário como último refúgio às necessidades dos cidadãos.
Com a proliferação de litígios, típicos de uma sociedade de massa, mostra-se necessária uma releitura do trinômio jurisdição-ação-processo, pois, ao contrário do paradigma anterior em que a jurisdição era confinada à tutela individual; o processo dizia respeito apenas aos próprios litigantes; e a ação era um direito exercido exclusivamente por um titular atualmente exige-se que o direito processual civil conduza o Poder Judiciário à solução de conflitos de interesses amplos e abrangentes de inúmeros envolvidos (metaindividuais, assim entendidos os difusos, coletivos e individuais homogêneos), bem como a ação seja exercida e o processo conduzido por representantes legitimados para a tutela de grupos sociais.
Eis o processo coletivo, passível de se observar a partir de legislações que tiveram como marco inicial a Lei da Ação Popular, Lei 4.717/65, manejável para defesa de valores de grande repercussão, como aqueles envolvendo o erário público. Tanto que Barbosa Moreira a ela assim se refere: “instrumento [pelo qual] é possível pleitear a invalidação de qualquer ato praticado por qualquer entidade, não só quando cause prejuízo pecuniário, mas também quando lese bens imateriais”(2). Posteriormente, advém a Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) e o conceito legal de interesses difusos aparece, no código de defesa do consumidor (art. 81, I).
Por outro lado, em que pese existentes institutos próprios do processo coletivo tais como o da “ausência de litispendência entre a ação coletiva e a individual”, versando sobre o mesmo objeto (ou seja, ainda que a questão esteja sendo discutida em uma ação coletiva, nada obsta que o indivíduo postule a mesma pretensão em uma demanda individual), a coisa julgada com eficácia “erga omnes” apenas quando procedente a demanda ou seja “secundum eventus litis in utilibus” (ou seja, em caso de improcedência da pretensão por deficiência de provas não irá se operar o mencionado efeito abrangente em relação à coletividade) não se pode negar a necessidade de tratamento da questão probatória no processo coletivo.
A legislação processual civil aplicável aos conflitos individuais clássicos prevê, basicamente, cinco meios de prova (depoimento pessoal, documental, testemunhal, pericial e inspeção judicial), ainda que não exclua outros, desde que moralmente legítimos e hábeis a se atingir a verdade (art. 332, CPC).
O que se propõe, além da inversão do ônus da prova (regra já passível de aplicação ante a previsão no Código de Defesa do Consumidor) e da previsão expressa da teoria da aptidão para a prova (distinção das partes relativamente ao fato a ser provado, considerando a conveniência de estimular a prova pertinente à parte que esteja em condições de fornecê-la) é a sistematização da chamada prova estatística ou por amostragem.
O estudo da amostra requer, necessariamente, uma análise de alguns conceitos de Estatística, disciplina cada vez mais presente em atividades da vida moderna. É possível encontrar-se, na natureza, dois tipos de fenômenos: os determinísticos e os aleatórios(3). Nos primeiros, independentemente do número de verificações, os resultados serão sempre os mesmos, para as mesmas condições do fenômeno. Já nos aleatórios, os resultados não possuem a mesma previsibilidade, quando aplicado grande número de verificações do mesmo fenômeno. Via de regra, as ciências sociais trabalharão com fenômenos aleatórios.
O estudo de um fenômeno social ocorre, exatamente, pela observação e experimentação. Assim, o estudo do social ocorre pela colheita de informações, análise e elaboração de conclusões generalizadas, daí a importância da Estatística. Na inferência estatística há um processo de generalização, a partir de resultados particulares. Trata-se, portanto, de inferir propriedades para o todo com base no particular.
Essas concepções iniciais permitem verificar a importância do estudo de elementos estatísticos para o Direito, em específico, no caso do presente estudo, para a produção de provas no processo coletivo. Sendo característica dos direitos transindividuais a necessária identidade de tratamento que o ordenamento jurídico deve dar a várias pessoas que se encontram em uma situação fática comum, a prolação de uma decisão aplicável a todas estas pessoas precisará estar embasada na verificação probatória de tal identidade fática. Evidentemente que a processualística coletiva não poderá exigir a produção de prova individual, por todos aqueles abrangidos pela referida situação fática, de tal similitude apta a obter a outorga da prestação jurisdicional coletiva, sob pena de se transformar o processo coletivo numa reunião de inúmeras demandas individuais, em contrariedade aos princípios que o norteiam.
É possível, assim, que por meio da produção de uma prova por amostragem, possa se inferir uma conclusão para o todo com base em uma análise do particular, caracterizando-se, assim, em eficaz instrumento de proteção de direitos e efetividade da tutela jurisdicional.
Notas:
(1) LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: RT, 2002, p. 25.
(2) MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ações coletivas na constituição de 1988. Revista de Process,o n.º 61/197. Conferência proferida em 11/9/1989 na Procuradoria Geral do Município do Rio de Janeiro, p. 187
(3) MORETTIN, Luiz Gonzaga. Estatística Básica: probabilidade. 7.ª ed. São Paulo: Markron Books, 1999. p. 1.
Luiz Gustavo de Andrade é advogado sócio do escritório Zornig, Andrade & Associados. Mestre em Direito e professor do Unicuritiba.