Dia 14 de abril de 2006, numa Sexta-Feira Santa, faleceu na cidade de São Paulo, aos 95 anos, o professor Miguel Reale.Filósofo, jurista e poeta, membro da Academia Brasileira de Letras, presidente do Instituto Brasileiro de Filosofia, por ele fundado em 1949, presidente honorário da Abrafi – Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito, e também um dos presidentes de honra da IVR Internationale Vereinigung für Rechts- und Sozialphilosophie, Doutor ?honoris causa? de universidades brasileiras e estrangeiras, nos últimos anos de sua vida atraía a carinhosa atenção de todos por seu incessante trabalho intelectual e exemplo de tenacidade. Lúcido até o último momento continuava a exercer a advocacia e jamais se afastou das letras jurídicas, brindando-nos com artigos e ensaios de grande importância e atualidade. Transitava tranqüilamente pelos mais variados temas, não só de Filosofia Jurídica, Política e Social, mas também da Teoria Dogmática do Direito. Profundo conhecedor do Direito Brasileiro, um de seus construtores, diga-se, além de sua dedicação às letras e ao pensar, Reale foi, sobretudo um professor, um mestre da oratória, cujas aulas, palestras e conferências ficaram permanentemente gravadas na memória de quem as vivenciou.
Miguel Reale nasceu em São Bento do Sapucaí-SP, em 6 de novembro de 1910, graduou-se pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, aonde veio a tornar-se catedrático de Filosofia do Direito, tendo sido por duas vezes reitor da Universidade de São Paulo.
Sua obra dedicada à pesquisa em Filosofia Jurídica, Política e Social foi extraordinária, com a publicação de dezenas de livros, alguns traduzidos para outros idiomas. Não menos importantes foram seus trabalhos em questões de Dogmática Jurídica, e sua contribuição ao Direito Brasileiro culminou com o texto do vigente Código Civil, redigido sob sua coordenação geral. O Código Civil Brasileiro, que entrou em vigor no dia 11 de janeiro de 2003, espelha muitas das idéias de Reale.
Além de merecer reconhecimento unânime como o mais importante dos filósofos brasileiros, mercê da originalidade de sua produção voltada para a Filosofia Geral, e, especialmente, para a Jusfilosofia, Miguel Reale representa o apogeu do movimento mais expressivo da história das idéias no Século XX, o Culturalismo Fenomenológico. Reunindo as mais expressivas manifestações do pensamento ocidental, essa corrente, a qual veio a impregnar a tradição ibero-americana através da obra de três gigantes, Recaséns, Cóssio e Reale, constitui-se em autêntico divisor da história contemporânea da filosofia.
No campo da Filosofia Jurídica, Política e Social, o momento culminante da obra de Reale é a Teoria Tridimensional do Direito. É a síntese de uma visão abrangente da sociedade, que lança suas raízes no Iluminismo e, ao mesmo tempo, assinala a reconciliação entre a Ciência e a Filosofia, antes separadas pela Metafísica iluminista.
O Culturalismo Jurídico demonstrara que a Ciência e a Filosofia do Direito podem e devem ser tratadas unitariamente, e Reale, tendo absorvido a Fenomenologia de Husserl e o Raciovitalismo de Ortega y Gasset, entre outras influências não menos importantes, desenvolveu uma Ontologia Jurídica em condições de estabelecer a perfeita articulação entre a busca de universais e as exigências de cientificidade, problema que catalisava a atenção dos estudiosos da Epistemologia Jurídica desde a famosa conferência do Procurador Kirchmann, em meados do Século XIX.
Sem abandonar a visão universalista herdada da Jusfilosofia tradicional, tratou Reale de livrar-se da tendência à hipostasiação de conceitos e valores, e o fez mediante a reconstrução científica do saber jurídico, pelo que logrou incorporar os valores ao verdadeiro objeto da Ciência do Direito. Sua busca é a universalidade ontológica do direito, mas seu referencial é a realidade do direito como experiência do dia-a-dia dos advogados, procuradores, magistrados e das pessoas comuns que vivenciam a justiça e a injustiça.
O alcance ontológico da Teoria Tridimensional foi o de estabelecer que o direito é algo que existe na história e se integra ao conjunto dos objetos criados pela atividade racional, a qual lhes atribui um sentido, transformando-os num dever ser de conteúdo valorativo concreto, tais como as obras de arte e as conquistas da ciência. A esse conjunto denomina-se precisamente cultura, e o progresso cultural engendra o que Reale denomina constantes axiológicas, núcleo da civilização, a qual tende a aperfeiçoar-se, mas sem jamais atingir um nível de absoluto, obra humana que é, produto da racionalidade. Esta é, aliás, mais uma implicação da Ontologia realeana, o esgotamento do ser no essencialmente humano, com o que se afasta de Hegel. Para Reale, o valor fonte de todos os valores é a pessoa humana.
Tal Ontologia Reale a considera uma Ontognoseologia exige novo modo de pensar o jurídico, um novo logos que se incorpora à Metodologia e a torna apta a dar-se conta da integralidade da experiência do direito, ou seja, como fato social, como norma expressa na lei e como valor incidindo no fato através da norma. Trata-se de uma dialética, que não é a hegeliana da contradição, mas de implicação, dado que os três elementos reciprocamente se exigem por integrarem a mesma unidade ontológica. Ao mesmo tempo, é uma dialética de polaridade, pois os valores do complexo tridimensional se polarizam positiva ou negativamente. Reale denominou a esse método, dialética de implicação-polaridade.
Embora elaborada em outro contexto, a Teoria Tridimensional do Direito pode propiciar, hoje, uma fundamentação científica e filosófica adequada à solução de questionamentos suscitados no contexto dos diversos ramos da Dogmática Jurídica.
Mas a obra de Reale teve ainda outro alcance. Ela se impõe como produção literária, manifesta numa poesia de grande sensibilidade, a qual revelava a alma, o saber e o amor que sua personalidade irradiava, envolvendo a todos os que dele se acercavam.
Outro aspecto decorre de sua liderança em relação aos movimentos intelectuais que reuniam pensadores em torno de tendências sempre renovadas, aspecto que se fez sentir particularmente em função dos congressos brasileiros e internacionais de Filosofia Social e Jurídica que promoveu. Estes albergavam professores e pesquisadores das mais diversas correntes: jusnaturalistas, positivistas, analíticos, culturalistas, alguns tidos como conservadores, outros como esquerdistas, todos eram igualmente acolhidos, não lhes negando incentivo para a criatividade e o progresso intelectual.
Essa dimensão pedagógica se fez sentir inclusive no mundo hispânico, pois seus encontros de filosofia contavam com a participação dos pensadores mais eminentes da Espanha e Iberoamérica.
O autor deste comentário dá seu testemunho pessoal acerca do empenho com que Reale sempre apoiou o pensamento crítico, segundo sua concepção de crítica, implicando o compromisso inarredável com a verdade. A vivência da verdade sempre norteou a vida e a obra de Reale, e bem por isso o culturalismo realeano é a vertente mais vigorosa da Teoria Crítica do Direito.
A História Contemporânea haverá de sopesar a influência de nosso mestre em todo o mundo ocidental, e sua ausência física não há de minimizar a PRESENÇA DE REALE no atual e futuro desenvolvimento de uma Filosofia Jurídica e Social capaz de propiciar respostas aos desafios intelectuais de nosso tempo.
Luiz Fernando Coelho é professor de Filosofia do Direito do Programa de Pós-Graduação da Universidade Paranaense Unipar de Umuarama/PR. Ex-titular de Filosofia do Direito da Universidade Federal do Paraná.