Os castelos da Idade Média, como se sabe, eram portentosas fortificações onde além das muralhas havia sempre um fosso cuja finalidade era tornar ainda mais difícil a penetração de indesejáveis naquele local. Neles também haviam torres: umas mais aparentes, de vigilância, e outra situada no epicentro da construção, a torre de homenagem. Esta construção representava o último bastião de defesa. Todo este esquema fora criado para os reis e os senhores feudais da Europa. Sua necessidade decorria do constante estado de guerra experimentado naquele tempo.
Nestas fortificações o ingresso só era possível pela ponte levadiça que se abria por sobre o fosso; a outra única forma possível era atravessar o fosso e superar as altíssimas muralhas. Mesmo assim, alcançar o pátio não queria dizer que o núcleo, a torre de homenagem, estava conquistado: embora já vencido mais de meio caminho, a conquista máxima exigiria ainda algum esforço.
Talvez desde aquela época o que caracteriza o Poder Judiciário é alhear-se num mundo próprio e longínquo; um mundo que não se deixa impregnar pelo modo de como as coisas operam na realidade. Encastelado, alheio… É assim que o Judiciário se coloca de tal forma perante àqueles que deveria servir que, de regra, transitar por seus salões solenes e seus faustosos corredores apenas não se afigura tão raro em razão da preferência de que desfrutam, pelo sistema penal, os estratos inferiores da sociedade.
Diante de uma tal constatação, deixar de pairar ao embalo de discursos de pouca consistência conduz à conclusão de que, a despeito dos tímidos avanços, o quadro institucional brasileiro ainda é muito deficitário diante das promessas que afirma cumprir. É neste embate que a advocacia, e de modo especial, a defensoria pública, ocupam talvez a mais importante posição: é justamente em sistemas frágeis institucionalmente que a advocacia e a defensoria pública se revelam os baluartes da defesa dos indivíduos contra o arbítrio e contra a violência (seja ela individual, social, institucional ou simbólica), especialmente manifestados pelo onipresente, quando conveniente, Estado contemporâneo.
Na verdade, qualquer palavra acerca da defensoria pública, recomenda contextualizá-la num campo que, semanticamente é morada de vários outros conceitos que a humanidade, a duras penas, ousou edificar. A advocacia e a defensoria pública, a cidadania e a democracia são faces do mesmo jogo de dados. São conceitos afins e fraternos.
Tais conceitos, no entanto, na atualidade reclamam ser alçados ao local que lhes é de direito. Uma tal forma de conceber certas categorias liberais deve partir, primeiro, do abandono de certo niilismo identificado com a incapacidade de reconhecer o avanço que esta estrutura de garantias encerra e, principalmente, num segundo momento, deve colocá-los em uma moldura comprometida com o concreto, com o real, para daí encontrar os reflexos normativos que porventura possam ser extraídos. Assim se impõe, por exemplo, a assunção dos direitos humanos não só como um assunto político, mas também como um instrumento de luta por uma sociedade mais justa. Desvincular os direitos humanos do plano que lhe é inerente – o plano político – significa subtrair-lhe seu predicado principal, que é ser meio, instrumento para a realização da pessoa. Penso que assumir estes conceitos, que o discurso corriqueiro teima em esvaziar de sentido, não pode negligenciar as condições de exercício de uma cidadania preocupada com suas raízes.
Esta mudança de enfoque, contudo, demanda o reconhecimento dos ensinamentos que só a História pode trazer. O olhar histórico, porém, deve contemplar uma sociedade que não negue sua verdadeira História; deve aprender com ela. Para mudar a realidade que é recuperar a realidade que foi: eis o desafio.
Na verdade a historiografia oficial tem o mau hábito de cometer quiçá a maior violência que se pode cometer contra a memória de um povo: a violência de se ocultar a violência. Dentro deste quadro ocupam lugar a falácia do brasileiro cordial e da democracia racial, por exemplo. Esta omissão trágica, sob um certo ponto de vista psicológico, é tradução de uma recusa em tratar do trauma que foi a (inacabada) colonização. Os reflexos desta resistência, assim, parecem implicar num perverso mecanismo de realimentação do trauma, que é o subdesenvolvimento: a auto-sabotagem da América Latina.
Um outro fator da maior relevância, passa pela constatação de que a conflitualidade é a regra da sociedade, notadamente dos complexos e emaranhados tecidos de que são revestidas as formações sociais contemporâneas. Com maior ênfase, nos dias que correm fala-se na “sociedade de risco”, caracterizadas pela intensificação dos conflitos, quer individuais, quer relativos a grupos, algo que também caracterizou outros períodos históricos. Vários dos fatos cotidianos estão a demonstrar a intensificação da crise em todos os níveis e matizes. Tanto as relações sociais entre grupos organizados ou não-organizados como entre Estados mais ou menos independentes, mas também as relações individuais, caminham – e na verdade já se encontram – para um momento de aguda tensão. Destes fatos são testemunhas o aumento da criminalidade, quantitativa e qualitativa, nos grandes centros urbanos brasileiros; a intensificação de um estado de guerra global permanente contra um amorfo e impreciso terrorismo; a política criminal de guerra… enfim, o distanciamento a cada dia maior do signo da alteridade.
Para encerrar e, voltando à metáfora, à Defensoria Pública incumbe o desafio de representar a ponte levadiça que sobre o fosso se abre, para levar até a torre de homenagem os reclamos e as angústias de um povo sofrido e espoliado. Em função do atendimento aos desfavorecidos que lhe caracteriza, é a mão estendida por entre as grades da masmorra da carência que oprime grande parte dos brasileiros; brasileiros estes que, para além de estarem despidos de bens materiais possuem até sua subjetividade entibecida. Sua auto-estima não lhes permite lutar por conquistas concretas e atinentes à cidadania prometida.
É esta a tarefa que, de forma mais ou menos consciente, desempenha os defensores públicos, pelo menos – e disto estou certo – os vinculados ao Serviço de Assistência Judiciária (SAJ) de Maringá.
Nunca se elogiará bastante aqueles que, com destemor e altruísmo, não renunciam a prestar auxílio e providenciar o acesso a uma ordem jurídica que se pretende justa àquele grande contingente de homens e mulheres que a forma de desenvolvimento socioeconômico em vigor não conseguiu trazer para dentro do ambiente em que deposita seus frutos – a cada dia mais modestos, diga-se de passagem.
Marco Alexandre de Souza Serra
é advogado em Maringá e discípulo do SAJ maserra@wnet.com.br